Comportamento
03.09.2015
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03.09.2015
20.03.14
Rolezeiros
por Dédallo Neves

Os rolezinhos sem classe de Curitiba

Foto: Divulgação

TRAJANO

Pareciam estar sós a dois. Era um casal, um homem e uma mulher. Era uma sexta-feira, de calor e de quinto dia útil do mês, logo se fazia propício o rolezinho. Estavam ambos no meio daquela multidão de pessoas, o rolê da Trajano, é da Trajano mesmo, na Trajano Reis, que vem lá do cemitério municipal e desemboca no Largo da Ordem. Com seus bares que parecem infinitos, mas são só alguns, alguns suficientes para fechar a rua, cobrir a calçada. Ali formou-se um ponto de táxi natural, eles se enfileiram na faixa da esquerda, pois é o lado que não se vê calçada, deu certo, foi espontâneo, dos táxis na Trajano Reis às pessoas na Trajano, o rolezinho aconteceu.

Me lembram as pessoas que já estão no rolezinho da Trajano antes dele se tornar A Trajano que tinha o Wonka, tocava jazz e tinha dia de samba; mais na frente, na quadra de baixo, o bar do Torto, na Paula Gomes com a Duque de Caxias; lá pra cima, no começo do Alto São Francisco ou no final do Baixo(?), o Porão e o Empório São Francisco. O São Francisco basicamente se resumia a isso, um boteco e três boates.

Agora, em 2014, nessa sexta-feira de verão, o casal se perde. Na Paula Gomes entre a Almirante Barroso e a Mateus Leme tem bar pra comer, pra beber, pra jogar. Na Trajano a mesma coisa, talvez eles nem tenham problemas com a vizinhança, porque os bares dividem parede. São bares com públicos particularmente heterogêneos. Têm os manos que ficam ali do lado de fora a beber suas garrafas pets, a misturar drogas, pichações e urina. (Seu Luís, o portuga que tem uma mercearia bem na esquina, sofre com as tintas, se pintar na segunda-feira, terça está pichado.) Os que fazem da Trajano uma Amsterdã insana, a consumir maconha como se fosse legalizada. Aí, para sustentar todos os usuários faz-se necessária a presença dos traficantes, que sustentam não só os maconheiros. Os usuários de crack não se camuflam na paisagem, vivem por ali a mendigar, os frequentadores até já os conhecem. E, além de todos esses, há muitos outros. E entre esses muitos todos há esse casal que saiu numa sexta-feira que pedia uma saída, que pedia uma cerveja gelada, uma música bem embalada.

Quando se depararam com a Trajano foi assustador o número de pessoas e filas, seja para comprar um bolinho ou entrar numa balada. Mas aquele bar às avessas estava agradável e se esconderam no meio da multidão ali na calçada da Trajano. Beberam seus goles. Os pés já se aquietavam e pediam música. Tinha uma portinha sem fila. “Partiu?” Entraram e estava a tocar ska e tinha um público bem definido, não era aquela lambança da Trajano com todos os tipos. Eles não tinham nenhuma turma ou tribo, se tivessem, no entanto, não seria aquela. Sustentaram-se firmemente por dez longos e intermináveis minutos e saíram. Era dia de ska naquele bar, a galera ia lá pra dançar e curtir um pouco da Jamaica. E assim são todos os dias, cada dia em cada bar uma música e por isso que a multiplicidade é tão bem-vinda no rolezinho da Trajano.

 

PRAÇA DA ESPANHA

Como a provincial Curitiba não se resume à Trajano, esse mesmo casal no sábado seguinte foi à Praça da Espanha. Um quarteirão com algumas coisas interessantes, uns restaurantes caros, uns botecos além do preço justo, sorveterias, cafés, etc., etc. Como é uma praça, mais do que natural que as pessoas fiquem ao ar livre. Como estava calor, o casal foi tomar um sorvete e sentar na praça para namorar. Afinal, “os casais de namorados são coisa que pertencem ao patrimônio de uma cidade”. E ali sentaram a esquecer da vida que permeava além do amor. Porém, não parava de chegar gente, mais e mais pessoas vinham. Coolers começaram a surgir, cervejas, vodcas e uísques a aparecer, um “tunts, tunts” a tocar e foi impossível permanecer ileso àquele ambiente. Fizeram da Praça da Espanha o que fizeram com a calçada da Trajano Reis, só que de dia e diferente.

De repente chegou uma picape e mais outra. Aí colocaram o som cada vez mais alto e cada vez mais. Cada carro que encostava ligava um som. E de novo, não mais que de repente, as pessoas começaram a subir nos carros e dançar nas caçambas. E o patrimônio da cidade ficou ali espantado, a se amar naquele clima festivo, mas esse era o rolezinho da Plaza de España.

As pessoas de lá não eram tão diversificadas, faziam parte de um estereótipo: homens fortes, mulheres bonitas e encaloradas, chegados em cervejas menos convencionais, as toás da vida, e em maconha (a comprovar a música de Gabriel e Lulu: “se você quer comprar é mais fácil que pão”, pois a padaria ficava do outro lado da Carlos de Carvalho e o cigarro verde estava disponível ali mesmo). Gostavam de música alta e sem letra. E o casal se permitiu àquela farra, pois encontraram uns amigos e ficaram ali a bater papo no meio daquela gente fisiculturista.

 

BATEL

Só que na Praça da Espanha não tem baladas e essas coisas, não é como a Trajano, que você fica ali fora e quando quer dançar entra. Na praça o clima é mais descontraído, é pra falar da vida alheia, pra disputar o som mais alto e o carro mais baixo. Por isso que o casal dali foi pra outro rolezinho, logo ali perto. O rolê da Batel. Heterogêneo? Um pouco. O pessoal da Praça da Espanha vai bastante lá, da Trajano nem tanto, mas, enfim, esse casal gostava era de festa, então eles iam onde tinha farra. E na Batel tem tanta balada que dá pra escolher o que ouvir, do sertanejo ao pop. Não exija muito. Mas, o casal não era exigente e foi. Naquela noite passaram por três lugares diferentes, quando não tocava sertanejo, tocava uma música que se sincronizava com as luzes. E lá não vai muito além disso. Tem lugares para comer: japonesa, americana, mexicana, fast-food, há opções.

 

MON

A madrugada deles já se apresentava o cedo do outro, estavam cansados e bêbados. “Partiu casa?” Táxi. Casa. “Tem que levar o Jo-Jo”. Já era tarde, nada de levar Jo-Jo pra passear, mas o peso na consciência fez com que no dia seguinte fossem ao MON pra ele poder correr e ver os amigos cães.

O Museu do Olho é um lugar bonito, nos fundos tem um gramado grande onde as pessoas levam os cachorros e as crianças pra correr, aí começou acontecer um fenômeno e o Museu se tornou um lugar esquizofrênico, a paisagem de fora não combinava com a paisagem de dentro, a paisagem de fora não combinava com a paisagem de fora. O espelho d’água refletia o museu e além mais...

Espontaneamente, assim como na Trajano, assim como na Praça da Espanha, surgiu o rolezinho do MON, nos finais de semana ele é tomado por gentes. Gente com roupa justa preta, com piercings, camisetas de banda, lenços no pescoço e na cabeça a misturar vodcas com refrigerantes que de tanto entornar o caneco caem por ali mesmo nas imediações do museu, embriagados de álcool. Gente que vai para entrar no museu e ver exposições e dali mesmo também sai embriagada – de arte. Gente que vai naquele gramado, se arriscar a pôr uma manta no chão, para conversar com os amigos, relaxar à luz do céu profundo. E gente como esse casal que aproveita o gramado pra soltar os bichos.

Quando chegaram o baque foi tão grande quanto na Trajano ou na Praça da Espanha. Viram um monte de adolescentes bêbados, independentes e longe dos pais, no museu eles são donos do próprio nariz, no rolezinho deles, são eles que determinam as regras e pareceu que a regra era não ter regras. Os símbolos anarquistas nas bolsas e camisetas se equivocavam com a filosofia anarquista, parecia que o anarquismo no rolezinho deles era espalhar o lixo pelo museu, beber até a consciência desaparecer, causar a discórdia e tumulto. Porém, faziam tudo isso numa área que parecia ser reservada a eles, na lateral.

Nos fundos os cachorros, coolers, cadeiras de praia e mantas dominavam, era um rolezinho totalmente diferente. E no piso do museu era ainda outro, um pessoal que dança e roda no chão e usa calça larga – outras palavras. E dentro do museu era ainda outro rolezinho. Logo, o museu que se tornou parque de cachorro, boteco de adolescente rebelde e pista de dança pra dançarino, ultrapassou as margens de lugar democrático e invadiu o terreno da esquizofrenia, pois tudo isso contrastava com as salas do interior, com as exposições de arte contemporânea, tão esquizofrênicas quanto todos esses rolezinhos misturados no mesmo espaço.

Mas esse casal é do rolê. Essa diversidade do sertanejo da Batel ao latido do MON os apetecia. E mais do que isso, gostavam de uma cerveja.

Passaram em casa, deixaram o Jo-Jo e foram tomar a última do final de semana. “Onde?”

 

LARGO DA ORDEM

O fim de tarde no Largo da Ordem foi tão surpreendente quanto o final de semana inteiro. As barracas da feirinha já estavam incrivelmente desmontadas, espaço físico tinha, mesmo com as mesas e cadeiras fincadas no entre-pedras, cujo equilíbrio exigido de corpos e garrafas era tão cruel quanto o do mendigo que cambaleava de mesa em bar a pedir, sincero, um dinheiro pro gole do rolezinho dele. Os skinheads e punks, metaleiros e hippies ainda estavam a carimbar a paisagem do centro histórico, cada qual no seu rolê.

O Largo todo final de semana é assim, vê-se essa paisagem, democrática e um bocado esquizofrênica, com suas igrejas e burgueses sem religião a se mesclar. O dono da padoca da esquina deve sofrer com os alcoólatras, chegam caindo de fome, com falta de modos e com incontestável respeito – no mundo etílico deles.

Um dos bares mais tradicionais da cidade está no Largo. No Alemão é famoso o submarino, uns se arriscam a beber mais de um. O casal não se arriscou, ficaram no chope do bar ao lado, a tomar uma brisa de fim de tarde e um sol leve que não pede protetor.

E depois de perder a conta do “mais dois, por favor”, de “qual é a tua, vai dar mole praquele cara”, da reconciliação (as brigas são boas, brigar é ruim, mas nada melhor que a reconciliação, parece que voltam a se amar mais do que antes, é a pimenta do salgado que faz beber mais cerveja), de todo o rolezinho do final de semana, pararam, pensaram, cautelosamente desesperados por se aperceberem que amanhã seria segunda, a volta da labuta diária, e viram que, mesmo provinciana, Curitiba nos multifacetados rolezinhos dá espaços. Espaços para todos, pros fisiculturistas burros, pros intelectualoides chatos, pros adolescentes rebeldes, pros skinheads loucos, pros hippies vagabundos, etc., etc. Até parece que os rolezinhos só têm isso, mas não, são mais, vai além do que um final de semana da vida desse casal pode mostrar, há outros bares, boates e baladas que não estão nesses points e se escondem na paisagem urbana entre paralelas e transversais.

E rolezinho não é só adolescente suburbano em shopping que dá. Há infinitas possibilidades de rolezinhos, da classe E à classe A.


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