Comportamento
03.09.2015
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20.06.14
Curitiba em feitiço
por Daniel Zanella

Curitiba parece ter, como na fábula de Saturno engolido por seu próprio filho, acreditado em demasia em sua predisposição de ser grande 

Foto: Joel Rocha/SMCS

Uma escritora de Manaus sempre que vinha pra cá ficava encantada com os semáforos sincronizados das rápidas curitibanas. Para ela, eram mágicos. A primeira vez que ela viu o fenômeno, mais logístico do que feiticeiro, percorria uma via na madrugada a 50 km/h. O motorista dizia “agora vai abrir” e o semáforo realmente abria, às vezes perigosamente em cima do comando. Ela lamentava, com nítida razão, que um trecho como do Capão Raso até o Centro demoraria no mínimo duas horas em sua cidade-natal – o trânsito em Manaus é realmente perturbador, um deserto superlotado, um limbo sem ar-condicionado. E tecia loas e odes às belezas e práticas locais.

Por mais que o curitibano-usuário-regular do transporte rodoviário não seja exatamente um latin lover na sua relação com os tais serviços públicos, muitos forasteiros consideram-nos um idílio. Gostam muito de nossas estações-tubo, que quase fervem no verão, e sentem-se na Europa com os terminais que avisam sobre o tempo da próxima parada. Só para você se situar no exercício comparativo, em Manaus a prefeitura local não tem sequer o controle do horário de circulação de sua frota terceirizada. Quem depende de ônibus diariamente tem apenas uma ideia aproximada do horário em que o coletivo irá passar. Muitas vezes não passa.

Da capital (do marketing) social aos problemas crônicos praticamente inerentes a toda metrópole, fardos que não podem ser debitados na conta apenas de uma ou duas administrações, Curitiba chega a 2014 em contexto político difícil, de desgaste de sua imagem externa e convivência turbulenta com suas mazelas – somos, por exemplo, a 6ª capital com maior taxa de homicídios do país, segundo dados do Mapa da Violência 2012, do Instituto Sangari. Em 2000 éramos a 20ª colocada com 26,2 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes; dez anos depois o número aumentou para 55,9.

A vinda da Copa do Mundo pra cá, confirmada a fórceps em 18 de fevereiro e vista inicialmente por muitos ingênuos como uma plataforma de desenvolvimento da região, revelou uma faceta não muito disseminada além de nossos biarticulados e suposta inexistência de favelas: uma cidade que não cumpre com os prazos estipulados e, a despeito de sua pujança econômica e eficiência reconhecida, não sabe gerenciar obras de grande porte. O curitibano, admirador discreto de seu próprio folclore, pode até não admitir, mas no âmago de suas idiossincrasias se sentiu atingido por todas as especulações e ameaças do alto escalão da Fifa e de seus prosélitos. Somos uma cidade como qualquer outra. Não há tapete suficiente para varrer para baixo o que não vai bem.

Aconteceu por aqui o que, de fato, foi alastrado por todo o país para a realização do maior evento esportivo do mundo, depois da Olimpíada, evidentemente: um cântico ao desperdício, ao descontrole e à desnecessidade. Como não podia deixar de ser, nosso conto é mais peculiar do que outros. Um estádio incompleto privado, ainda assim, um dos mais modernos do Brasil, se não o mais, se coloca na condição voluntária de atender aos encargos da Fifa e, de sede mais pronta, se torna a mais atrasada, algo quase neoconcretista, de mais arranjado ao mais desconstruído.

(Não se pode deixar de salientar os problemas de transição de administração na cidade. Diversos projetos iniciados no governo anterior no que se refere às mudanças estruturais locais, como mobilidade urbana, foram completamente engavetados ou peculiarmente remodelados, prática comum, a descontinuidade como estratégia. A cidade perdeu tempo no processo.)

É difícil medir o que houve de equívocos e desmazelo na condução das obras na Arena da Baixada. Primeiramente, é preciso considerar que a Copa do Mundo no Brasil ultrapassa a esfera esportiva e se conjuga numa miscelânea de interesses políticos e partidários. Agora não convém, por ora, vingar os males, mas curá-los – ou remendar o que for possível. (É quase palpável os desdobramentos investigativos da Copa e das Olimpíadas em breve.)

De tudo o que foi publicado na imprensa sobre a Copa, um texto em especial chamou a atenção por fazer uma observação peculiar. Em um artigo publicado na Gazeta do Povo de 20 de fevereiro, o engenheiro e urbanista Fábio Duarte falou sobre a capital modesta, uma antiga Curitiba de soluções simples – bons parques em locais inóspitos, calçadões centrais para prestigiar pedestres, ciclovias ao longo de margens de rios – e que desembocou numa urbe mais decorativa do que funcional, de projetos megalomaníacos, como o inviável metrô, lenda urbana quase semelhante ao fantasma da Loira do Abranches.

Talvez o símbolo do desprestígio com as soluções modestas mais eficientes seja a ponte estaiada da Avenida das Torres. Não é preciso ser engenheiro para saber que uma obra ali era necessária, mas que uma trincheira daria conta. O prefeito da época chegou a dizer que Curitiba também merecia uma ponte estaiada, assim como São Paulo. Como assim, São Paulo? Onde foi que erramos que precisamos nos inspirar em São Paulo?

Curitiba parece ter, como na fábula de Saturno engolido por seu próprio filho, acreditado em demasia em sua predisposição de ser grande, uma cidade-modelo no que tange ao pior que a definição pode entregar: para olhos que não são os nossos, um organismo que se garganteia e esquece necessidades mais urgentes de seus cidadãos.

A Arena da Baixada, ultrapassando as discussões de boteco ou o pesado jogo político que se instaurou na reta final das obras, é mais uma alegoria de um espírito pragmático que perdemos e da sujeição a um padrão que não deveria ser o nosso. Sempre fomos uma cidade para dentro, não para fora. É translúcida a importância de um evento de tal magnitude numa das cidades mais importantes economicamente do país, mas também parece cada vez mais hercúleo o legado posterior: estádios inócuos, dívidas públicas, gastos equivocados, melhorias urbanas irrisórias. Ao menos, o Atlético Paranaense terá um belo patrimônio ao fim disso tudo, ao custo de centenas de milhões de reais, é verdade.

De todo modo, habemus Copa, com seus quatro jogos de nível técnico que não prometem, assim, tanta ostentação. Mas é futebol, um esporte de dantes e quixotes, onde qualquer jogo do interior do mundo carrega elementos da mais dramática das tragédias gregas. E saiba, manauara agora oficialmente habitante de Curitiba, que quando chove um pouco mais forte as árvores caem nas vias rápidas e os semáforos mágicos param de funcionar.


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