Comportamento
03.09.2015
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03.09.2015
03.09.2015
17.10.14
O ônibus de cada dia
por Arnaldo Brizola

A rotina de quem contribui para diminuir o gás carbônico no mundo

Foto: Revista Ideias
Foto: Revista Ideias
Foto: Revista Ideias
Foto: Revista Ideias
Foto: Revista Ideias

Muito se fala sobre o acréscimo de números de carros, de quilômetros de trânsito, como hoje é mais que ontem e amanhã será maior que hoje, o tempo para se chegar em casa. Mas o bafafá sobre os carros e todos os seus problemas torna-se chato, monótono e pouco interessante quando pensamos nos ônibus e todas as suas idiossincrasias.
As histórias, as pessoas, os casos são os mais diversos – do mais esquisito, como aquele peladão, no dia 12 de setembro, que apenas de tênis embarcou no ônibus Campo Comprido/CIC e foi flagrado por câmeras de outros passageiros; ao mais sinistro, como o motorista que esfaqueou um rapaz que furou a catraca na estação-tubo Quitandinha, no Sítio Cercado, no dia 23 do mesmo mês.
Não precisa, no entanto, ir de um extremo a outro para ver os universos que existem em cada busão de Curitiba, afinal, em 2014, de acordo com a Urbs, a média diária de passageiros transportados pela Rede Integrada de Transporte (RIT) – a RIT contempla também os municípios da região metropolitana – foi de 2.270.000, ou seja, mais que a população inteira de Curitiba, logo, são os mais distintos tipos que transitam diariamente pelos terminais, pontos, tubos de Curitiba e região metropolitana.

Horários
Para cada hora do dia um público diferente, os ônibus iniciais, aqueles que saem das garagens perto das seis horas da manhã, carregam poucas pessoas, em dias de semana são aquelas que moram longe, muito longe do seu local de trabalho, que têm que fazer três baldeações para chegar pelas oito no serviço, ou aquelas que pegam cedo, mais cedo das que pegam cedo no batente. Se for no final de semana é a galera jovem a voltar das noitadas.
Perto das sete e até por volta das sete e meia, os estudantes já tomam conta, com suas mochilas nas costas a ocupar mais da metade do corredor, a impedir a passagem de qualquer magrelo – falta bom senso e leitura, pois os ônibus trazem bilhetinhos a dizer para não ficar com a mochila nas costas. Junto com os estudantes tartarugas surgem os trabalhadores que vão ao serviço, e nessa hora enche. Quem pega qualquer biarticulado entre as sete e as nove horas sabe que aquilo parece formigueiro, no entanto só no sentido centro. As formiguinhas atoladas umas por cima das outras invejam quem está no Boqueirão sentido bairro, nesse caso parece um salão de dança, dá para deitar, rolar, escolher se vai à frente ou atrás, no lado esquerdo ou direito, é uma maravilha, só que ninguém vai para o bairro entre as sete e as nove da manhã, todos vão para o centro.
Depois das nove, os ônibus convencionais – os amarelinhos – se enchem de vovós e vovôs, eles vão para a “cidade” para conversar com o gerente do banco, passear na Rua da Cidadania e na Rua das Flores; neste momento os motoristas já estão à flor da pele, à beira de um ataque de nervos, pois estão superatrasados, mas têm que ter paciência: os vovôs e as vovós demoram a embarcar e a desembarcar – eles já tiveram pressa demais na vida, agora estão em outra. Os biarticulados já deram uma esvaziada e os ligeirinhos (os cinzas), não se sabe por que raios, estão 24 horas por dia cheios.
Quando chega perto do almoço, a garotada zarpa da aula e é um fuzuê só, pois tem a amálgama dos alunos da manhã com os da tarde e ao meio-dia já está todo mundo bem acordado – diferente entre as sete e às sete e meia, que os adolescentes estão feito zumbis, porque ficaram no computador até tarde e dormiram pouco. Entre o meio-dia e as duas da tarde também há um acréscimo na movimentação da cidade, mas nada de surreal.
De tarde, das duas até as cinco horas, o movimento cai, os motoristas parecem estar mais calmos, e as vovós e vovôs que não saíram de manhã fazem o passeio vespertino. Pelas quatro e meia, já é possível ver pessoas a voltar do trabalho, uns com cara de vítima, a tentar convencer a si próprios da mentira inventada ao chefe para sair mais cedo, outros que ainda estão na correria e não tem um carro.
Depois das cinco, o inferno muda de sentido e caminha para o bairro, todos os pontos e tubos aglomeram pessoas, muitas pessoas. Perplexos os passageiros pensam, “para onde vai toda essa gente?”.

Quem apanha o Colombo/CIC, na Praça Rui Barbosa,enfrenta uma fila quilométrica somente para entrar no tubo, quando consegue vencer essa labuta, tem que lutar para conseguir entrar no ônibus, pois todos estão cheios, isso que entre as 17h46 e 19h49 ele passa de seis em seis minutos, ou seja, num espaço de duas horas passam 22 ônibus que têm capacidade para levar 110 passageiros, o que contabiliza – a considerar que não embarcam mais de 110 pessoas por ônibus – 2.420 passageiros somente no tubo da Praça Rui Barbosa da linha Colombo/CIC.
O pessoal do Boqueirão, que de manhã assistia passageiros saracoteando no sentido bairro, às 18h30 odeia os que estão indo ao centro. As praças Rui Barbosa, Tiradentes, Santos Andrade, a Travessa Nestor de Castro, além de todos os outros pontos, atolam pessoas que só querem chegar em casa a tempo da novela das sete. E isso se repete todos os dias, em todos os terminais, afinal são 2.270.000 pessoas que se deslocam.

Personalidades
Conversas de bonde são carregadas de verdades inquestionáveis, de fofocas da vizinhança, de babados das celebridades, de múltiplos falatórios. São tão interessantes quanto às de botequim.
Há aqueles ônibus que parecem van escolar ou universitária, tamanho o número de estudantes. Os Interbairros V que passam na PUCPR depois das dez e até as onze da noite são exclusivos dos universitários, logo as conversas giram em torno da prova difícil, do professor cretino, do colega que ficou no bar e não entregou sua parte do trabalho, da próxima chopada e o churras na casa da Aninha.
Nos ônibus que circulam em regiões mais humildes as pessoas são mais falantes, carregam aquela imagem caricata do povo que habita a periferia, representada em determinados núcleos das novelas ou em minisséries como A Grande Família. O ti-ti-ti que se ouve permite ao passageiro ao lado conhecer todos os problemas que há na vida da pessoa, do ex-marido que não paga pensão, do marido que não parou de beber, do marido que parou de beber e agora, graças a Deus, entrou para a igreja, ou do assalto que teve na casa da frente. E para cada história existe uma réplica com a mesma história, só que com outros personagens e para cada réplica há uma tréplica, que já costura outra história até a hora do desembarque.
Às vezes não é possível ouvir esses diálogos porque os ônibus trazem outro tipo. Aquele que gosta de compartilhar a última moda do funk. Estar por dentro dos álbuns da Valesca Poposuda e de outras novidades é fácil, é só apanhar o bonde, sempre haverá alguém que gentilmente apresentará o que mais tem tocado nas rádios e o que mais faz sucesso na internet (certamente se essas pessoas tivessem carro ele seria rebaixado e com umas caixas de som estridentes). Foi assim que descobri a MC Mayara, sucesso de Colombo. Foi também no ônibus que descobri que ela estava grávida.
(Os ônibus são como aqueles sites que não trazem o tradicional “.com.br” no final e sempre têm um furo de reportagem, as notícias são de fato bombásticas, porém pouco confiáveis. Quando Eduardo Campos morreu, ouvi um passageiro a comentar, era por volta de uma hora, custei a acreditar, pensei que era mais uma entre tantas mentiras que inventam durante o período eleitoral, caí do cavalo, tem vezes que a notícia é real.)
Contudo, não é só de cenas pitorescas que é feito o transporte público, há o lado down, triste e deprimente. São aquelas pessoas que vêm vender ou pedir alguma coisa para poder comer, para a filha poder comer, para pagar a cirurgia ou para qualquer outra coisa entristecedora, ora real, ora não. Embora seja proibido por lei praticar essa atividade, ninguém tem coragem de dizer: “colega, você não tem permissão para fazer isso” ou denunciá-lo a algum fiscal da Urbs ou a um guarda municipal. Aí entra um dilema filosófico sobre moral e justiça, Aristóteles pestanejaria ao ver a cena.
Ultimamente nos ônibus alimentadores – os alaranjados que circulam nos bairros – vem sendo divulgada a imagem do candidato e o que ele fez pela comunidade. Quem não sabe em quem votar deveria entrar em algum ônibus laranja para descobrir o melhor candidato. E o pessoal se mostra entendido do assunto, “este é ficha limpa”.
Tem também quem atrapalhe. De trombadinha a pervertidos. Uns ficam depredando o patrimônio público, outros não pagam passagem, alguns assaltam, outros furtam. Isso impede o sossego na volta para casa. Chegou-se a cogitar colocar policiais militares nos ônibus. As mulheres se queixam com homens abusados que se esfregam nelas, algumas vezes chegam a pôr o órgão genital para fora da calça – quem só anda de carro provavelmente não acreditará nisso, mas é verdade. E uma das coisas que mais incomoda é torcida organizada, gritam, esbarram, agridem. Essa corja precisa chegar ao estádio e, para isso, usam o busão.

Em tempo
Em tempo chuvoso, como foi o final de setembro, os ônibus ficam com um odor muito peculiar, algo que varia entre mofo e vira-lata molhado. O ar é quente, as janelas fechadas, e não é possível abri-las senão molha, mas também não é possível deixá-las fechadas, senão o oxigênio acaba. Quem tem que sair do Capão Raso e ir até o Santa Cândida está lascado, o jeito é ficar na porta e cada vez que ela abrir puxar o ar.
Andar de ônibus não é bom apenas para diminuir o trânsito e a concentração de CO2, andar de ônibus põe as pessoas em contato com a realidade, com todas as realidades, mesmo que seja um bocado de cada uma ou mais uma do que outra. Os coletivos trazem toda a pluralidade da cidade. Há ônibus que têm mais um tipo de gente do que de outro, há uns que mostram a cara de determinada região, há outros que mostram a cara de todas as regiões, uns são muito pobres, outros nem tanto. Há ônibus com pessoal tagarela, outros, silencioso. O transporte coletivo pulsa a cidade em todas as esferas. E, acima disso tudo, é uma necessidade.


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