Comportamento
03.09.2015
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08.12.14
O que Julien Blanc tem a nos ensinar?
por Camila Petry Feiler
Foto: Pedro Ribas
Foto: Pedro Ribas
Ilustração: Pryscila Vieira
Foto: Pedro Ribas

Ser mulher no Brasil é um paradoxo. Aos olhos daqui, tudo está bom, nada falta, é tudo totalmente igualitário. Ainda mais quando anunciam nos programas sensacionalistas de domingo o quanto a Índia ou a África são malvadas com suas mulheres – sem contextualizar o peso das culturas. Que bom que vivo no Brasil!
Mas é isso mesmo? Nos últimos dias as redes sociais pegaram fogo com o caso Julien Blanc. Esse senhor americano gostaria de se apresentar em terras papagalis para ensinar técnicas de paqueras aos nossos senhores. Essas técnicas envolvem sufocamento de mulheres, pegando-as pelo pescoço e levando o rosto em direção ao seu pênis. Sim, esse “xaveco forçado” pra mim tem outro nome: estupro. Mas sabe o que mais me indigna? É que ele não viria se ninguém o quisesse aqui, ou seja, vários homens pagariam a bagatela de R$ 1.980 reais para ver uma palestra de como ir além de qualquer limite da mulher.
E melhora: se você não pode comparecer ao acompanhamento físico, é possível fazê-lo virtualmente pelo valor de US$ 497. Isso porque ele faz parte da equipe de “instrutores” de uma empresa norte-americana chamada Real Social Dynamics, que se apresenta como “a maior empresa de encontros do mundo”. Seus colegas de trabalho o definem como o grande pegador e seus feitos são muito exaltados. No site, ele afirma:“It’s Offensive, It’s Inappropriate, It’s Emotionally Scarring, but it’s damn effective” (É ofensivo, inapropriado, emocionalmente traumatizante, mas efetivo).
Na linha seguinte ele garante que é só brincadeira. Pena ser tão sem graça. Além disso, olha o que a ativista Jennifer Li, australiana responsável pela petição que o expulsou de lá e teve 41 mil assinaturas, disse: “Julien Blanc e seu grupo são sexistas e racistas que ganham a vida ensinando homens como violar mulheres por meio do abuso físico e emocional”.
Como muito bem colocou Denise Berruezo Portinari, doutora em psicologia e professora da PUC-RJ, “o interessante é que Julien Blanc parece ter perdido a linha, e com isso tornou flagrante a violência e o machismo que constituem o cerne desse universo playboy. É mais um daqueles casos que simplesmente evidenciam aquilo que já estava lá o tempo todo. A novidade aí parece ser a amplitude e a eficácia da reação possibilitada pela mobilização das redes sociais e da mídia”.
A Austrália o deportou, país que o receberia até dezembro, depois de uma péssima passagem pelo Japão – onde também não querem saber dele. E tem mais: a secretária do Interior do Reino Unido, Lynne Featherstone, pediu ao governo que não conceda o visto a Blanc, acusado de promover um “discurso sexista odioso”. Canadá e Coreia do Sul também recolheram assinaturas para vetar a entrada dele. No Brasil, após intensa mobilização pelas redes sociais e várias assinaturas contra a vinda de Blanc, o Itamaraty informou que embaixadas e consulados do país no exterior foram instruídos a negar um possível pedido de visto.
O moço tá atrasado achando que a gente precisa de aula sobre esse assunto. Mal sabe ele que a cultura do estupro é forte por aqui – ainda culpam as vítimas e deixam os estupradores de lado. Além disso, os novos índices de violência sexual são assustadores.
De acordo com o 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 11 de novembro, 50.320 casos de estupros foram registrados em 2013. O levantamento fez uma consideração importante, tornando a situação ainda pior: “apenas 35% das vítimas costumam relatar o episódio às polícias, segundo pesquisas internacionais. Assim é possível que o Brasil tenha convivido no ano passado com cerca de 143 mil estupros”.
O Paraná ocupa o 11º lugar no ranking, com 32,5 casos por grupo de 100 mil pessoas. De acordo com o documento, existe uma banalização da violência no país, onde “os dados do fórum reforçam que o país convive com taxas absurdas, que naturalizam mais de 53 mil crimes violentos letais e 50 mil estupros registrados. Isso para não falar nas constantes ameaças do crime organizado”.
Jussara Cardoso, integrante da Marcha das Vadias de Curitiba, disse que “cerca de 85% dos estupros ocorrem dentro de casa, mais de 70% das vítimas conhecem o agressor (pais, tios, primos, filhos, irmão, maridos, padrastos). Em pouco mais da metade dos estupros em nosso país, as vítimas têm menos de 18 anos e estima-se que apenas 10% dos casos são denunciados.” Ou seja, a situação é pior do que a gente imagina.

Mas, afinal, o que é cultura do estupro?
A expressão “cultura do estupro” se tornou recorrente quando o assunto é violência contra a mulher e se refere a uma sociedade que coloca a culpa na vítima. Surgiu entre 1960 e 1970, nos Estados Unidos, onde o estupro era considerado uma doença, uma anomalia, uma “necessidade” masculina, uma mentira ou culpa da vítima.
O estupro não está ligado ao prazer sexual e sim a uma relação de poder, onde o processo de intimidação mantém as mulheres em estado de medo permanente. Dessa maneira, o estupro funciona como uma forma de coerção social, já que para não sofrer mais violência a mulher se mantém nos papéis pré-determinados, obedecendo às normas vigentes.
Não sei se você lembra, mas uma pesquisa feita pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão vinculado ao governo federal, mostrou que 65% dos entrevistados concordavam que quando a mulher mostra seu corpo usando roupa curta, justa ou decotada, merece ser estuprada.
No fim, a pesquisa assumiu erros, os índices seriam menores do que os apresentados, mas a questão tomou uma dimensão maior que isso. Primeiro que independentemente do número de pessoas que pensam isso ou não, mulheres continuam sendo estupradas diariamente e o assunto deveria ser visto como caso de saúde pública.
Mas não. Essa forma de violência é estatisticamente subestimada no mundo – até no país do fio dental. Isso porque a maioria dos estupros acontece no ambiente familiar e nem chegam à delegacia. Isso fica evidente nos dados apresentados anteriormente.
Além disso, de acordo com Denise Portinari, ser “dona” do próprio corpo é uma questão que depende de vários fatores. “Há toda uma dimensão política, ou melhor, biopolítica, que consiste justamente em fomentar a ilusão de que somos ‘donos’ de nossos corpos, quando na verdade quase nada daquilo que concerne esses corpos está na alçada das nossas decisões e escolhas. E estreitando ainda mais o foco, como pode uma mulher considerar-se ‘dona’ do seu corpo em um país que criminaliza o aborto? Diante de tudo isso, o estupro aparece como a forma mais extremada de uma violência que é exercida todos os dias e que cotidianamente tira da mulher qualquer possibilidade de apoderar-se de seu corpo.”

Vadi@s, quem são vocês?
Sabe toda essa historinha ali de cima da crença de que as mulheres que são vítimas de estupro são as culpadas por isso? Então, daí surgiu a Marcha das Vadias. É que em janeiro de 2011, muitos casos de abuso sexual de mulheres aconteceram na Universidade de Toronto. Em uma palestra sobre segurança, um policial meio desinformado disse que as alunas deveriam evitar se vestir como vadias (sluts, no inglês), para não serem vítimas. O primeiro protesto levou 3 mil pessoas às ruas de Toronto.
Depois disso, o movimento se espalhou por várias cidades no mundo, levando muita gente às ruas e gerando controvérsias. Os corpos à mostra dizendo isso não é um chamado, nenhum corpo convida quando não concorda, nenhuma roupa insinua nada.
O termo vadia é historicamente carregado de uma conotação machista, onde o peso recai sobre a mulher, acusando seu caráter. Nesse caso, o termo foi ressignificado de maneira criativa ao confundir os limites normativos que constroem a figura da “mulher estuprável”, isto é, estar no comando da vida sexual não significa abrir para uma expectativa de violência.
Dessa forma, a Marcha das Vadias tenta mostrar que as mulheres podem se vestir como querem, afinal, a culpa é do estuprador. Certo? Nem tanto. A manifestação gerou muitas polêmicas e contradições. E a questão é: a Marcha ganha repercussão pela causa ou pela maneira como as mulheres se vestem?
Existem posicionamentos dizendo que no fim vários homens vão dizer quais mulheres podem e quais não podem marchar, objetificando a mulher, e chegando ao ponto que a mulher precisa agradar o homem para ser ouvida. Para Jussara Cardoso, a manifestação traz uma variedade grande de mulheres e homens e todos gritam pela desconstrução do machismo.  “Acredito que o que causa o choque não seja estes corpos, mas sim a situação em que eles estão sendo expostos. São corpos conscientes de que têm direito de serem o que são, de que são livres, batendo de frente com a ideia machista de que não são. A cultura machista dita onde e quando corpos femininos podem estar nus e diz que só pode apenas em lugares ou momentos para satisfazer desejos masculinos, como revistas masculinas, carnaval, TV e em quatro paredes”, afirma ela.
Não podemos deixar o Paraná de lado. “Somos o terceiro Estado no Ranking de violência contra a mulher. Piraquara, que fica na região metropolitana, é a segunda cidade do país com o maior índice de violência contra mulher. Ainda temos muito a caminhar, já que o Paraná é um Estado extremamente conservador, o que contribui para que a luta seja difícil e constante. Enquanto uma mulher for agredida e culpada, a Marcha das Vadias vai existir.”
Agora, além da Marcha das Vadias, houve um boom no surgimento e aumento de grupos e coletivos que falem da causa. Isso mostra que o machismo está sendo problematizado, explorado, questionado e desnaturalizado.

Na universidade, novos caminhos
Por mais que os espaços sejam restritos, estão se abrindo novos caminhos para a discussão sobre os direitos das mulheres. As universidades, reflexo de uma sociedade machista, se tornaram palco de inúmeras discussões, grupos e coletivos. A ideia é mobilizar a sociedade para a perspectiva de igualdade de gênero, mostrando que é possível mudar.
Os grupos mostram certezas arraigadas que talvez não sejam tão certas assim. Em Curitiba, um clássico foi o Manual de Sobrevivência, do curso de Direito da UFPR. Nele eram apresentados os “bons modos” que as calouras deveriam seguir para com seus veteranos, entre eles a “obrigação de dar”. Ele foi retirado de cena, e, de acordo com os organizadores, era para ser só uma brincadeira. Dessa brincadeira surgiu o Coletivo Iara, que sentiu a necessidade de um grupo auto-organizado de mulheres para discutir questões como essas.
Isso porque mesmo sendo um ambiente tão diversificado como a universidade, as vozes mais presentes e importantes costumam ser masculinas. Isso gera consequências no empoderamento das mulheres. Por isso os coletivos carregam algumas funções como de acolhimento das mulheres dentro da universidade, ambiente muito machista, e de realizar a desmistificação do feminismo, conscientizando as pessoas de violências que às vezes passam despercebidas, como o trote, em certos casos.
“É preciso, primeiro, reconhecer que o machismo, infelizmente, é estruturante em nossa sociedade. Somos todas e todos criadas e criados num meio machista e isso faz com que todas e todos reproduzamos o machismo de alguma maneira cotidianamente.” Isso é o que nos diz Priscila Villani, uma das organizadoras do Coletivo Iara.
O legado desses grupos vai além dos muros da escola. O Coletivo Iara, por exemplo, trabalha com alguns projetos de extensão como o Promotoras Legais Populares, de educação feminista popular, e o projeto Mulheres pelas Mulheres, que realiza mutirões mensais nas penitenciárias femininas de Piraquara (região metropolitana) visando dar assistência judiciária às internas.
Mesmo que os olhos daqui vejam tudo tão distante do ideal, a luta continua. O importante é acreditar que é possível mudar com pequenos gestos, como uma assinatura numa rede social. A não vinda de Blanc já é um avanço para o país, mas o caminho continua e é longo.

* Este texto trata de estupros contra mulheres.


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