Comportamento
03.09.2015
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08.08.12
Nem só seio e nome feio
por Christiane Kremer

Por trás do choque e da irreverência, Marcha das Vadias põe o dedo na ferida do abuso e violência contra a mulher


Talvez você acompanhe a luta, tenha conhecimento aprofundado e até uma inclinação definida sobre o tema. Se não chegou a esse nível, pelo menos já ouviu ou leu alguma coisa sobre a Marcha das Vadias. O movimento originado em Toronto, no Canadá, sob o nome de SlutWalk, surgiu em abril de 2011 após um policial ter declarado, em palestra, que mulheres vítimas de estupro eram as culpadas pelo crime por se vestirem como “vagabundas”.  Como uma onda de protestos, as manifestações se espalharam pelo mundo. No Brasil, ganhou rapidamente algumas capitais. Muitas lançaram seus próprios movimentos já no primeiro ano e saíram às ruas, entre elas a paranaense. Outras cidades se agendaram para o movimento nacional, realizado em maio deste ano.

Independente de onde ou quando começou, o fato é que cada vez que chega a uma cidade, a Marcha das Vadias mexe nas estruturas locais. O movimento divide opiniões e é, frequentemente, alvo de críticas.  Há os que se revoltam com o nome da marcha e aqueles que julgam desrespeitosa a nudez e a forma de se vestir das militantes nas manifestações.

Em Curitiba, a primeira marcha causou debates e uma cobertura ainda curiosa e surpresa da mídia. Já a edição deste ano, realizada em julho, começou pegando fogo. Principalmente nos dois dias que antecederam a manifestação, quando um colunista de um jornal de grande circulação na capital assinou um artigo desqualificando a marcha. No texto, comparava as ativistas a carcaças de gambá, definindo-as como a representação feminina do que, na opinião dele, há de pior entre os homens. O artigo aqueceu o debate nas redes sociais e em blogs. Tanto que no dia da marcha, a coluna de opinião do mesmo jornal publicou um texto escrito pelas organizadoras justificando a importância social da mobilização.

Envolto a polêmicas, o movimento só cresce - tanto em número de participantes quanto na adesão de outros municípios. Neste ano a Polícia Militar contabilizou cerca de mil pessoas na marcha curitibana, o dobro do que foi registrado no primeiro ano. A comunidade criada no Facebook para o evento, já foi “curtida” por quase 2.700 usuários. No interior do Paraná, cidades como Guarapuava, Maringá e Londrina já têm suas versões. Ponta Grossa não ficou de fora e lançou sua marcha no evento da capital.

Entre amar ou odiar a Marcha das Vadias, vale, no mínimo, entender o que tem por trás desse evento que motiva tantas mulheres a saírem de suas casas para ganhar as ruas sob a alcunha de “vadias”. Na opinião da antropóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp, Regina Facchini, tamanha mobilização está ligada justamente à estética irreverente do movimento para tratar problemas sérios no universo feminino, como a invisibilidade social e o descaso com que são tratadas as situações de violência física e sexual.  “Na marcha, a figura da vadia, palavra utilizada para desqualificar o comportamento feminino e, muitas vezes, justificar a violência e culpar vítimas, é usada para chamar a atenção das pessoas para o fato de que não é possível seguir silenciando acerca da violência sexual ou justificando-a a partir de um suposto comportamento inadequado da vítima”, explica a pesquisadora.

Expostos nas marchas, muito mais do que seios e partes do corpo, estão os números que legitimam a causa. Na manifestação em Curitiba, as estatísticas da violência contra a mulher, como as divulgadas em abril pelo Instituto Sangari, nortearam os discursos das “vadias”. O relatório Mapa da Violência 2012, já divulgado na edição 128 de Ideias, revela que o Paraná é o terceiro Estado onde mais morrem mulheres assassinadas. Já no ranking das cidades que mais matam mulheres, Piraquara, na região metropolitana, figura na segunda colocação nacional. Segundo as organizadoras da marcha em Curitiba, o cenário só reforça a palavra vadia como “sinônimo de mulher que luta e não se cala”.

Sinônimo que pode ser ampliado para cidadãos que não se calam. A antropóloga da Unicamp chama atenção para a força de mobilização da marcha e para a capacidade de dar voz a bandeiras de luta diversificadas. “A Marcha das Vadias é uma manifestação cujo principal foco é a luta contra a violência sexual. Na medida em que esse tipo de violência também atinge outros sujeitos socialmente marginalizados, como gays, travestis, transexuais e mulheres de diferentes inserções raciais e geracionais, ela passa a ser uma luta que articula vários sujeitos.”

Essa pluralidade de discurso ficou bem demarcada na versão curitibana deste ano. A manifestante Rafaela Hoebel, de 31 anos, por exemplo, marchou do Passeio Público até a Boca Maldita, levantando a bandeira para uma dupla discriminação sofrida por ela mesma: a da homossexualidade e outra por ser surda.  Sua reivindicação é que os órgãos públicos tenham profissionais preparados para atender vítimas com necessidades específicas. “Se uma mulher surda é agredida e procura uma delegacia, ela enfrenta barreiras de comunicação”, relatou.

Unanimidade pela luta 

Além de reunir bandeiras diversas, a marcha também tem uma composição heterogênea de “soldados”. Era só obsevar os que esperavam o início da marcha curitibana em frente ao Passeio Público: grupos de amigos, casais, irmãos, famílias, pessoas sozinhas. Gente de diferentes classes sociais, tribos, idades, inclinações políticas e com os mais diversos argumentos para estar ali.

Uma das líderes do grupo, a atriz Ludmila Nascarella, contou que cerca de 70% da militância ativa já sofreram algum tipo de abuso ou violência doméstica, seja ela física ou psicológica. Ela mesma, aos 35 anos, diz ser próprio protocolo da Lei Maria da Penha - carrega na bolsa uma medida protetiva contra o companheiro de um relacionamento anterior.

Mas o fato é que a unanimidade na marcha se dá mesmo é pela luta. Difícil encontrar alguém que titubeasse ao explicar por que estava ali. Podiam não saber de cor todas as bandeiras levantadas pelo movimento. A essência, porém, estava na ponta da língua até daqueles que, em tese, não teriam nem idade para se preocupar com assuntos tão espinhosos. Como a garotinha Ghenwa Arnaout, de dez anos.  Ao lado das tias, esperava ansiosa pelo início da passeata. Queria marchar por “mais respeito às mulheres”, justificou sem pestanejar.

Longe da agitação, a professora de história, mãe e avó, Neide Lorenzi observava a marcha passar pela Praça 19 de Dezembro, a do “Homem Nu”. À primeira vista parecia que havia parado para tentar entender que bagunça era aquela no centro da cidade. Carro de som, mulheres com os peitos de fora, corpos pintados, homens de batom. Que nada. Neide saiu de Araucária, onde leciona história na rede pública de ensino, com destino certo: a Marcha das Vadias. Acompanhada pela filha e uma neta, ela não gritou, nem tirou a roupa. Também não tem simpatia pelo nome, mas considera o movimento sério e vai levar o tema para a sala de aula.

É justamente esse tipo de reação, de fazer com que as pessoas falem e pensem sobre algo que não costumam refletir, é que torna a Marcha interessante. As alunas de Engenharia Civil Angela Lima, de 20 anos, e Luciana Trevizan, de 19, estavam lá por essa razão. Queriam conhecer e entender melhor para passar adiante. Disseminar a ideia. Plantar sementes.

Benditos frutos 

Mesmo tímida, a presença de homens nas passeatas vem se mostrando mais ativa do que passiva. Ainda que circulem curiosos do sexo masculino entre os manifestantes lançando olhares maliciosos sobre a nudez das ativistas, esses fatos parecem ser isolados. Pelo menos na marcha curitibana, onde o que se via eram homens ao lado das companheiras segurando cartazes ou simplesmente carregando os filhos no colo para as mães protestarem.  Alguns ousaram e foram um pouco mais “feministas”, como o jovem que exibia nas costas a frase “Aí machão: vem me estuprar”. Outros fizeram como o assistente administrativo Bernardo Pilotto, que protestou pintando os lábios com batom vermelho. “É preciso mostrar que os homens também são contra o machismo. É uma pauta de todos”, justificou o ato. 

A adesão dos companheiros é uma grande força para a marcha atual. A questão era bastante difícil no movimento feminista das décadas de 60 e 70. Segundo Marlene Tamanini, doutora em Ciências Humanas e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná (UFPR), as primeiras feministas no Brasil sofriam muitas retaliações. “Quando uma mulher publicava um artigo sobre a causa era chamada de feia, sapatão e mal amada. Isso era feito na tentativa de desmerecer sua capacidade intelectual”, explica. A sensibilização masculina à causa feminista mostra o surgimento de jovens com outra mentalidade, acredita a pesquisadora da UFPR.

Na Marcha paulistana, segundo a antropóloga Regina Facchini, os homens não só apoiaram a causa feminina, como aproveitaram o espaço para denunciar situações de violência sexual que viveram e que não têm como ser tratadas nas estruturas atuais de acolhimento a vítima.

Da estética para a prática 

Por surgir num momento em que o Brasil vivencia uma explosão e certa implosão de mobilizações de rua, é natural que se questione o futuro da Marcha das Vadias. Regina Facchini diz que a manifestação das mulheres parece ter estratégias bem definidas. A começar por sua estética polêmica, responsável pelas críticas negativas que acabam se tornando positivas por manterem o tema em debate e ampliarem a discussão.

No entanto, vale citar a Marcha Contra a Corrupção, mesmo que o exemplo não pareça adequado. Em sua terceira edição, o ato enfrenta dificuldades para se tornar um movimento político, conforme especialistas. Esse também deve ser um desafio para a Marcha das Vadias. “Passar do discurso para uma estratégia de ação prática, ganhando espaço nas instituições e também nas representações políticas. Esse é o desafio”, comenta a pesquisadora Marlene Tamanini. Segundo ela, quando um movimento esbarra nas questões instrucionais precisa de outro amparo cultural e normativo para poder agir. “Atingir as estratégias de luta em outras instâncias é que vai determinar se a Marcha vai ou não se perder”, explica.

A organização da Marcha das Vadias de Curitiba parece estar indo na direção certa. Segundo a organizadora Ludmila Nascarella, com apenas um ano o movimento já contabiliza conquistas importantes. Ela cita algumas, como a participação para a criação do relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência Contra a Mulher do Congresso Nacional e na Conferência Municipal de Políticas Públicas para Mulheres. “Organizamos também, junto com outros coletivos, a Marcha das Mulheres do Campo e da Cidade e somos ativas em grupos de pesquisa e estudo junto a universidades.” Aos poucos, a irreverência vai compartilhando seu espaço com uma expressão mais séria, adequada para as bandeiras de luta que defendem na marcha.


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