Comportamento
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07.03.13
Medicina: o lado obscuro que nos dá medo
por Redação

Quando a confiança nos médicos e na medicina é quebrada.

A médica Virgínia Soares de Sousa foi presa sob a acusação de apressar a morte de seus pacientes na UTI do Hospital Evangélico. Crédito: Henry Milleo /Agência de Notícias Gazeta do Povo
Bilhete de paciente internada na UTI do Hospital Evangélico, que pediu socorro Crédito: Arquivo pessoal
O Hospital Evangélico é o cenário do episódio que chocou o País Crédito: Divulgação
Hospital São Vicente negou-se a dar socorro ao ex-prefeito Saul Raiz, que, com três balas no corpo, teve que procurar atendimento em outro hospital Crédito: Diego Pisante

Os comuns dos mortais esperam do médico e da medicina a salvação. Eles representam a esperança de saúde e estão no imaginário dos homens como figuras sagradas a quem podemos confiar a vida. Quando algo rompe essa relação de confiança, instala-se o medo. A revelação de que uma médica comandava a antecipação da morte de pacientes na UTI do Hospital Evangélico chocou a população de Curitiba, que já estava indignada com a recusa de outro hospital, o São Vicente, de dar socorro médico a um homem de 83 anos, baleado três vezes por assaltantes numa rua próxima.

A sensação é de insegurança, aprofundada pela dúvida. O que mais acontece no lado escuro da atividade médica que não conhecemos? Em quem confiar? Essas questões apareceram com destaque nas sondagens de opinião feitas após a revelação da polícia sobre os desmandos na UTI do Evangélico. E provam que é necessária uma fiscalização mais rigorosa e permanente sobre a atividade médica e os hospitais.

Devemos à Medicina os maiores avanços da humanidade nos últimos 50 anos. Prova disso é a conquista da longevidade. A expectativa média de vida dilatou-se consideravelmente.

As descobertas são fantásticas. Da imunização preventiva aos transplantes de órgãos, da descoberta dos antibióticos ao diagnóstico rápido e seguro por imagens, evoluímos em meio século mais do que em todos os milênios anteriores de história da humanidade.

O campo da engenharia genética deu origem a um acontecimento promissor: a determinação da estrutura do DNA – base de toda matéria viva e responsável pela transmissão do código genético. Mais tarde, reveladas as chamadas enzimas de restrição, capazes de fragmentar a molécula do DNA, tornou-se possível alterar o código genético de uma célula, introduzindo nela um segmento de DNA de outra totalmente diferente. A engenharia genética já colabora para a produção de hormônios, enzimas e vacinas, e prevê-se que sua atuação se amplie consideravelmente no futuro.

O drama é que as conquistas ainda dependem, em sua oferta, de sistemas e instituições que estão longe de corresponder à qualidade das descobertas. No Brasil, temos o SUS baseado num princípio de universalidade, mas que funciona por um sistema de cotas. A assistência primária é insuficiente e ineficiente.

Ao mesmo tempo, temos medicina e instituições de ponta de alta complexidade. Médicos respeitados no planeta. Enfim, temos muito a esperar da Medicina. É preciso repensar o sistema público, o sistema privado, os convênios, a formação médica depois da proliferação de faculdades sabidamente desqualificadas. São estes senões e fatos como o da UTI do Hospital Evangélico de Curitiba que nos obrigam a pensar.

 

O lado obscuro da Medicina 

Dois fatos graves abalaram a confiança dos curitibanos em instituições médicas de Curitiba. Primeiro, o Hospital São Vicente negou-se a dar socorro ao ex-prefeito Saul Raiz, que ali chegou com três balas no corpo depois de um assalto na rua. A portaria do hospital alegou que não era preparado para emergências. O paciente, a sangrar, foi levado para o Hospital Evangélico em seu próprio carro, agora dirigido por um misericordioso funcionário da garagem do São Vicente.

Se soubesse o que alguns dias depois todos saberíamos, Saul Raiz teria se recusado a ir para o Hospital Evangélico. A polícia prendeu a médica Virgínia Soares de Sousa, indiciada por homicídio qualificado. Depois de um ano de investigações, a polícia reuniu provas de que a médica costumava antecipar a morte de pacientes internados na UTI do Hospital Evangélico, um dos maiores do País, mantido pela Sociedade Evangélica Beneficente, que reúne 13 igrejas evangélicas e que administra também a Faculdade Evangélica de Medicina.

Nos dias seguintes, mais quatro médicos foram presos, entre eles dois anestesiologistas do Evangélico. As investigações agora prosseguem com os acusados na prisão. Outros médicos e enfermeiros do hospital podem ser detidos. Não está descartada a exumação de corpos. Dezenas de denúncias se acumulam na mesa da delegada Paula Brisola, encarregada de encerrar o inquérito em 30 dias.

A pergunta que todos se fazem e que ainda não mereceram respostas convincentes é esta: por que essa situação perdurou por tanto tempo, mesmo diante de tantas denúncias e queixas de parentes de pacientes que morreram na UTI do Evangélico?

Há pistas. A médica Virgínia Soares de Sousa trabalha há 25 anos no Hospital Universitário Evangélico. Por muito tempo foi assistente do marido, que chefiava a UTI. Com a morte dele, foi ungida no cargo pela direção do hospital, cuja propriedade e administração é da Sociedade Evangélica Beneficente (SEB)

Desde que assumiu e escorada pela direção, comandou a UTI como seu território e com mão de ferro. Um detalhe. Virgínia nem poderia dirigir a UTI, pois não tinha especialização em medicina intensiva. Contou com a conivência do homem que dirigiu o Hospital Evangélico durante quatro décadas, o deputado André Zacharow, que, segundo antigos auxiliares, bancou a autoridade de Virgínia, que sempre respondeu diretamente a ele. Todas as queixas e suspeições levantadas contra ela foram ignoradas.

 

Comportamento desequilibrado

Acusações de parentes inconformados com a morte de pacientes são insuficientes para dar consistência às denúncias e isso protegia e dava à médica Virgínia a sensação de absoluta impunidade por seus atos. Mesmo quando se demonstrava que ela teria “comportamento desequilibrado”, inclusive no relacionamento com colegas.

Virgínia costumava brigar com colegas, auxiliares de enfermagem e outros assistentes da UTI. As brigas, segundo as denúncias trabalhistas, costumavam vir acompanhadas de agressões físicas praticadas pela médica contra funcionários. A ponto de alguns deles alegarem, na Justiça do Trabalho, terem sido espancados por Virgínia. “Por isso, o Evangélico responde a ações milionárias no âmbito trabalhista”, diz uma enfermeira do Hospital, pedindo anonimato “por motivos óbvios”.

Essas acusações resultaram em processos na Justiça do Trabalho, alguns milionários, que o Hospital Evangélico responde “desde os tempos de André Zacharow”, completou a fonte, que também conta que Virgínia tinha tão limitado respeito aos pacientes que se dava ao prazer de fumar “intensamente em plena UTI, “para espanto de todos”, diz um médico. Sempre que essas denúncias eram levadas à direção, Virgínia recebia apoio de seu protetor, André Zacharow.

O jornalista, ex-deputado constituinte, Aírton Cordeiro, vai mais longe. Ao se referir à situação de dificuldades e falta de recursos materiais com que vivem a mantenedora (SEB) e o Hospital Evangélico de Curitiba, lembrou, referindo-se a André Zacharow, que o “político que até recentemente participava da administração da SEB e do Evangélico” terá de ser responsabilizado pelos desmandos que hoje prejudicam o hospital (o maior prestador de serviços ao SUS) e Curitiba, no final. Esse parlamentar, diz Aírton, só tem a resguardá-lo a imunidade do mandato. “Mais cedo ou mais tarde, certamente será duramente punido.”

No caos administrativo deixado por Zacharow, o Hospital Evangélico é marcado por acusações de irregularidades. Em apenas uma delas, o de desvio de R$ 3 milhões, apurado pelo Tribunal de Contas da União.

 

Testemunhas aparecem

A prisão da médica Virgínia Soares de Sousa abriu a porta para as denúncias contra ela. São muitas. A polícia terá muito trabalho para separar o que se baseia em fatos concretos, objetivos, da reação emocional de pessoas que se sentem atingidas pelo comportamento da diretora da UTI.

Uma dessas denúncias alcançou repercussão nacional. Uma ex-paciente contou como conseguiu escapar com vida.  Mostrou um bilhete de letras tremidas de quem vivia momentos de desespero na UTI. “Eu preciso sair daqui, pois tentaram hoje me matar desligando os aparelhos toda a noite. Por isso que tenho que sair”, lê a mulher que entregou essa mensagem à sua filha.

Em dezembro do ano passado, a mulher, que prefere não se identificar, ficou 26 dias na UTI do Hospital Evangélico com infecção generalizada. Ela diz que estava consciente quando ouviu a médica Virgínia Helena Soares de Sousa mandar desligar o respirador.

“Ela falou assim: que era para desligar para ver se eu aguentava sobreviver. Se eu não conseguisse, eu não tinha chance. Isso eu ouvi da boca da médica. Só que daí uma enfermeira viu que eu estava agoniando, ela veio e ligou de novo”, lembra.

A filha, que recebeu o bilhete em uma visita e que também prefere não se identificar, diz que no dia pensou apenas que a mãe estava confusa. Mas agora, com a prisão da médica, quer que o caso seja investigado. “Graças a Deus que não foi ela uma das vítimas, pessoas que morreram. Com certeza deve ter investigação e fazer justiça”, afirma a filha.

O técnico em enfermagem Silvio de Almeida prestou depoimento à polícia. Ele disse que os pacientes que a médica considerava com menos chance de sobreviver eram deixados com uma quantidade mínima de oxigênio no respirador.

“Depois que ela baixava tudo, dava uma depressão respiratória no paciente. Ela ajudava com pavulon também, que é um remédio que faz aquela depressão respiratória, então tudo isso ajuda. Ajuda a matar o paciente. O paciente está vivo, aí mata o paciente”, relata Silvio de Almeida.

O técnico em enfermagem disse também como era o comportamento da médica com os colegas de trabalho: “Ela entra fumando dentro da UTI, ela joga tamanco nos funcionários, joga tamanco em residente, acadêmico. Ela ficava com um apito. Quando ela queria chamar um enfermeiro, ela chamava com um apito. Quando o enfermeiro fazia qualquer coisa errada, ela dava cartão vermelho”.

 

Investigações prosseguem

A Polícia Civil falou sobre a prisão da médica Virgínia Helena Soares de Sousa através do delegado-geral da Polícia Civil, Marcus Vinicius Michelotto. Ele informou que há provas robustas e suficientes para que a médica seja indiciada por homicídio qualificado, quando há a intenção de matar.

“O que nós julgamos aqui é a questão de assassinatos. Ela está sendo investigada por isto”, contou o delegado. “Não me lembro de um caso como este envolvendo a saúde. Nós fizemos a nossa parte e agora vamos aguardar a decisão da Justiça. O Ministério Público está nos apoiando no caso para que tudo seja feito da maneira correta”, complementou Michelotto.

A delegada-chefe do Nucrisa, Paula Brisola, que investiga o caso, também o trata com poucas palavras. “É uma investigação que veio por meio de denúncias, que já dura mais de um ano. Ela teve a prisão preventiva de 30 dias decretada para que possamos colher mais informações. Estamos mantendo tudo em sigilo porque é algo sério que exige todo o cuidado”, contou.

A Prefeitura de Curitiba escalou a equipe que acompanhará o funcionamento do Hospital Evangélico. O ortopedista Luiz Carlos Sobania, o médico intensivista Ilmar José Ramos Carneiro Leão e o médico e auditor Mário Lobato da Costa passaram a atuar no hospital. A equipe contará também com o médico Maurício Marcondes Ribas, indicado pelo Conselho Regional de Medicina.

A medida, decidida em conjunto com a direção do hospital, procura assegurar a continuidade do atendimento aos pacientes e a apurar outras irregularidades na instituição.  A sindicância para apurar eventuais irregularidades ocorridas na UTI Geral do Hospital Evangélico será conduzida pelo médico Mário Lobato da Costa, que é auditor do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), órgão do Ministério da Saúde, e está à disposição da Secretaria Municipal da Saúde.

O Conselho Regional de Medicina também designou o médico Maurício Marcondes Ribas, que é vice-presidente do CRM e funcionário da Secretaria Municipal de Saúde, para acompanhar os trabalhos.

Há antecedentes que deveriam ter alertado o Conselho Regional de Medicina. Em 2010, o Hospital Evangélico foi autuado pela Vigilância Sanitária porque foram encontrados cinzeiros e bitucas de cigarro na UTI. Em 2011, a médica Virgínia Helena foi suspensa por um mês por problemas de relacionamento com a equipe da UTI.

Além da médica-chefe, que está presa, os outros profissionais da equipe foram substituídos. A sindicância, que está sendo acompanhada por um representante do Ministério da Saúde, vai fazer um levantamento das mortes ocorridas na UTI do Hospital Evangélico nos últimos dois anos. A comissão pretende fazer uma comparação com o número de mortes de outras unidades de tratamento intensivo.

 

A defesa de Virgínia

O advogado de Virgínia Soares de Sousa, doutor Elias Mattar Assad, refutou as declarações dos delegados. “O que vemos aqui é um pedido de prisão antes das provas serem colhidas. Não é informado um caso de alguém que morreu por culpa dela, então como se pode prendê-la?”, questionou.

O advogado declarou que as denúncias de funcionários e de ex-funcionários do hospital não são fundamentadas em provas. Ele também disse que não considera prova o bilhete escrito pela ex-paciente.

Ele publicou manifesto assinado também por Virgínia Soares de Sousa: É o que se segue:

 

Público manifesto

O livre exercício da medicina está em risco no Brasil. A prosperar o movimento da polícia paranaense no caso da médica subscritora, colocando-se em dúvida, sem provas válidas pré-constituídas, os procedimentos e critérios científicos de terapia intensiva, atestados de óbitos, laudos do IML e afins, doravante tudo será questionado e os profissionais da área serão completamente desmoralizados: se um paciente der entrada na terapia intensiva e vier a óbito, dirão no mínimo que foi imperícia ou até mesmo homicídio qualificado. O óbito ou eventuais sequelas naturais serão sempre debitados aos médicos com os transtornos decorrentes (prisões, agressões, questionamentos éticos, exposições públicas irreparáveis e aborrecimentos sem fim). A ciência médica não pode ser relativizada ou mesmo  inviabilizada no seu livre e ético exercício, pelos altos riscos a que doravante estarão expostos os seus profissionais, mormente socorristas e intensivistas que trabalham diuturnamente na tênue fronteira da vida e da morte. Da leitura atenta dos autos de inquérito, com meus advogados, não está provada sequer a existência do fato, quanto mais materialidade de qualquer crime.

É a presente para perpetuar a memória do que está se constituindo no maior erro investigativo e midiático da nossa história. Pedimos especial atenção e minucioso acompanhamento da comunidade científica; e que toda pessoa que conhece realmente o trabalho da médica subscritora que se apresente e se declare.

 

“A verdade é filha do tempo e não da autoridade...” (Galileu)

 

Curitiba, 22/2/2013.

 

Virgínia Helena Soares de Sousa

Médica CRMPR 8146

 

Elias Mattar Assad

Advogado


Tags: Medicina; UTI; Evangélico;



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