Comportamento
03.09.2015
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09.04.13
Fim da escuridão
por Christiane Kremer Fotos: Lelo Izuhara

Após três anos sob intervenção judicial, IPC ainda sofre para colocar as contas em dia, mas acumula avanços na inclusão de deficientes visuais

Aos 76 anos, seu José aguarda ser chamado pela Cohab. Quer morar sozinho novamente
Vilma ainda precisa ser guiada, mas logo estará independente: não falta às aulas de orientação e mobilidade
A garota Yorhana frequenta o IPC há dois anos para aulas de orientação e mobilidade, artes e apoio escolar
Apesar das dívidas, o orçamento ainda está equilibrado, mas impede alguns investimentos, diz o administrador Enio Rodrigues da Rosa
Na biblioteca do IPC os livros também são adaptados para os alunos de baixa visão, conta a diretora Idamaris Singulani Costa

O barulho dos carros na movimentada Avenida Visconde de Guarapuava, em Curitiba, inibe um pouco, mas ainda é possível ouvir um som animado que escapa pelas janelas do Instituto Paranaense de Cegos (IPC). Bateria, sanfona, pandeiro, teclado, xilofone. É dia de musicoterapia, uma das atividades oferecidas aos moradores do local e também para o público externo. A turma é pequena, cerca de 10 pessoas, considerando o número de moradores – 26 atualmente. Nada que comprometa a qualidade musical. Aquarela, de Toquinho, por exemplo, é tocada com graça e harmonia pelo grupo. Vilma Lucia Calligari, de 47 anos, é uma das integrantes. Canta e toca xilofone. Aprendeu o instrumento ali mesmo. “Gosto muito das aulas. Anima a gente. É ruim ficar parada, sem fazer nada”, diz. Quando chegou ao IPC, há seis anos, não participava de nenhuma atividade. “Era desanimada”, lembra. Hoje, além de cultivar o prazer pela música, vai faceira para as aulas de artesanato e frequenta quase todos os dias a academia da instituição. “Faço esteira”, orgulha-se.

A deficiência surgiu na fase adulta por conta da diabetes. “Não cuidava. Nem sabia que tinha. Cheguei aqui com quase 500 de glicemia.” Vilma precisa de ajuda para caminhar pela instituição, pois só enxerga vultos e luminosidade. Condição que não vai durar muito tempo, segundo ela, já que é frequentadora assídua das aulas de orientação e mobilidade do instituto. Está aprendendo a usar a bengala para se locomover de forma independente. “Quero morar sozinha e trabalhar como telefonista”, projeta. Ela até já fez a inscrição na Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) e só espera ser chamada.

Nessa expectativa também está o sanfoneiro oficial do grupo, seu José Maria Leal, de 76 anos. Ele mora no instituto há sete e diz que veio por conta própria. Não tem vínculo familiar, nem sabe o paradeiro dos filhos. “Família a gente não pratica mais”, lamenta. Seu José, que trabalhou por muito tempo na roça, nasceu cego do olho esquerdo e ainda novo sofreu um acidente que causou a deficiência no direito.  Assim como Vilma, aguarda a casa própria e vai treinando o uso da bengala. Quer andar pelas ruas, inclusive para poder voltar ao instituto, fazer as atividades e continuar tocando a sanfona que ganhou da esposa de um músico da cidade. “Diz ela que vai trazer o marido para me ouvir”, conta.

Depoimentos como os dos “músicos”, que revelam uma sede por independência, não eram comuns por lá até pouco tempo. Por incrível que possa parecer, a verdadeira inclusão social das pessoas com deficiência era algo distante dentro do modelo praticado no IPC. A instituição, que completou 73 anos, chegou a abrigar mais de 200 pessoas cegas. Algumas levadas para lá por terem tido seus direitos violados. Mas a maioria abandonada pelos familiares que viam no IPC a “solução para o problema”. Um “depósito de cegos” praticamente. Regiana Almeida, assistente social da instituição, informa que dos 26 moradores restantes, 13 são idosos. Desses, há gente que mora lá há mais de 40 anos. “Perderam completamente o vínculo familiar e são muito dependentes. Não têm autonomia”, revela.

 

NOVO IPC

Mas o cenário começou a mudar em 2009 quando o Instituto de Cegos sofreu a terceira intervenção pelo Ministério Público do Paraná. Foram investigadas denúncias sobre desvio de dinheiro e situações de descaso e abandono de moradores. Constatadas as irregularidades, a diretoria anterior foi destituída e nomeado um administrador judicial provisório para conduzir a instituição no período de intervenção. A missão foi dada ao pedagogo e especialista em Educação Especial Enio Rodrigues da Rosa, de Cascavel.  A escolha, no entanto, não agradou a todos. Rosa, que é deficiente visual, conta que grupos da capital se movimentaram contra. “Não entendiam porque um cego do interior deveria administrar o IPC”, recorda.

Mas era o melhor nome, lembra a advogada Angelina Carmela Romão Mattar Matiskei, que na época chefiava o Departamento de Educação Especial e Inclusão Educacional do Estado (DEEIN) e presidia o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Coede). Ela foi uma das pessoas que sugeriu veemente o nome de Enio para a tarefa. “Precisávamos de alguém que pudesse reestruturar o IPC, que promovesse, além de uma gestão transparente e melhor administração dos recursos, um modelo mais contemporâneo em substituição do assistencialismo que estava cristalizado. A sociedade pedia mudanças”, conta. “E o professor Enio estava envolvido nas discussões sociais, políticas e educacionais, era membro do conselho, tinha postura ética e experiência própria no contexto dos deficientes visuais”, justifica Matiskei.

De fato as mudanças começaram a acontecer por lá. E ainda continuam. Ao mesmo tempo em que organizava as contas e rombos deixados no caixa da instituição, o atual administrador iniciou o projeto para um “Novo IPC”. “O instituto é a representação de um modelo iniciado na França em 1734, que chegou ao Brasil em 1854 quando D. Pedro II criou o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, hoje o Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. Um modelo que chegou ao Paraná em 1939 e que não estava mais em conformidade com a sociedade atual. Era preciso repensar toda a parte organizacional e conceitual”, explica Rosa.

O trabalho seguiu na perspectiva da cidadania. Na opinião do interventor, era preciso compreender que apesar da desvantagem social, a pessoa cega é cidadã normal e que se tiver acesso a ferramentas e técnicas que facilitem sua inserção pode realizar qualquer tipo de atividade na sociedade. “Por isso, nosso foco agora é na formação do cidadão. As atividades, como aulas de Braille, não são mais encaradas como terapia ocupacional para cegos, mas uma ferramenta cujo domínio é indispensável para uma vida em sociedade”, cita.

Uma das primeiras medidas tomadas foi a interrupção do serviço de abrigo permanente. Novos moradores não são mais aceitos no instituto. “Uma maneira de não romper os vínculos familiares e de integrar o deficiente na família para que tenha o apoio da mesma”, diz. Os antigos permanecem e continuam tendo moradia, recebendo assistência médica e alimentação. Eles ainda são estimulados a participar das atividades de orientação e mobilidade, informática, estímulo visual, educação física, arte e de vida autônoma. Para essa última, há uma casa montada dentro do IPC para que possam aprender a executar tarefas simples do dia a dia, como cozinhar, arrumar a cama, lavar louça, fazer a barba e tomar banho.

 

É DE PEQUENO...

Ainda que entre os moradores antigos essa tarefa seja mais difícil, para as crianças e adolescentes que frequentam o instituto a independência já parece “correr nas veias”. Andam perfeitamente de um corredor para o outro, a maioria sozinha e sem bengala. Por vezes correm para chegar ao parquinho, onde sobem rapidamente para deslizar pelo escorregador e de lá partir para o balanço. Não se esbarram, nem se perdem. Têm plena noção de direção e do que são capazes de fazer. Algumas frequentam as aulas regulares do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) na Escola de Educação Especial Professor Osny Macedo Saldanha que funciona dentro do IPC. Outras estudam em escolas convencionais, mas vão ao instituto, no contraturno, para participar das atividades e ter reforço escolar.

A adolescente Yorhana Clarice Bogado Bernardo faz isso há dois anos. De manhã frequenta a 8ª série da Escola Estadual Dom Pedro II e à tarde, pelo menos quatro vezes na semana, vai para o IPC ter aula de artes e apoio escolar. Já passou pelas aulas de orientação e mobilidade e tira de letra o que aprendeu nas de atividades da vida autônoma. “Cheguei aqui bem mal em algumas técnicas. Sabia usar a bengala, mas não tinha segurança para cruzar ruas e para me direcionar. Agora construo na minha cabeça um mapa mental dos lugares. Peguei uma independência muito grande nesses dois anos”, afirma a garota.  Yorhana, hoje com 14 anos, nem se lembra de um dia já ter enxergado. Perdeu a visão muito cedo, com apenas sete meses. “Alguns médicos dizem que foi por causa de uma queda que sofri na infância. Tive convulsões”, conta. Desde então só vê vultos e claridade, o que parece ser suficiente para levar uma vida com poucas limitações. Vai bem na escola, nunca reprovou e, em casa, não tem dificuldade para ajudar nas tarefas domésticas. “Consigo lavar a louça, varrer a casa e arrumo sozinha minha cama”. Também cuida bem da aparência. Nas mãos, unhas coloridas e anéis delicados enfeitam os dedos ainda pequenos.

A garota é um exemplo de que a postura adotada após a intervenção está dando certo. A advogada Angelina Carmela Romão Mattar Matiskei, que hoje acompanha apenas de longe as mudanças no IPC, acredita que a decisão tomada há três anos era de fato importante. “O tempo está mostrando que a Promotoria e a Secretaria de Educação tinham razão e o dever de buscar a melhoria nesse trabalho que o instituto oferece aos deficientes visuais”, constata. O mais interessante, segundo ela, é ver que apesar da intervenção ter se dado por questões administrativas e financeiras, principalmente, a educação parece ter sido a grande vitoriosa.

Atualmente, o IPC recebe 250 pessoas por mês e realiza mais de três mil atendimentos, entre aulas de Braille, soroban, informática, apoio escolar e nas atividades especiais. Também está investindo em projetos inovadores como o Ver com as mãos, em que as crianças e os adolescentes cegos ou com baixa visão têm a oportunidade de conhecer museus e participar de oficinas de arte no contraturno escolar. “Hoje o IPC é procurado por alunos de universidades que querem conhecer essa realidade e desenvolver pesquisas aqui dentro como campo de estágio. E é isso que queremos, um Novo IPC, próximo das universidades e que ande por aí”, espera o administrador.  “Conseguimos sair da situação caótica e estamos em outro patamar”, comemora.

  

Serviço

O Instituto Paranaense de Cegos fica na Avenida Visconde de Guarapuava, 4186. Aceita doações de recursos, alimentos, roupas e também está aberto para voluntários. Informações:

(41) 3242-5487

www.novoipc.org.br

institutoparanaensedecegos-ipc.blogspot.com.br


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Intervenção: ainda há sequelas

 

Após três anos de intervenção e avanços na forma de atuar, o Instituto Paranaense de Cegos ainda não alcançou a tranquilidade no orçamento. O atual administrador Enio Rodrigues da Rosa diz que algumas dívidas foram negociadas, outras, no entanto, são impagáveis. “Só para a Copel e a Sanepar devemos R$ 1,5 milhão. Resultado da falta de pagamento das contas de água e luz desde 2001”, informa. O IPC ainda não paga por esses recursos, que são garantidos judicialmente, mas, segundo Rosa, há interesse em resolver a situação. “A dívida total é impagável, mas queremos começar a pagar pelo uso atual da água e da luz. E para isso precisamos encontrar uma saída política. Gostaríamos que as companhias e o governo fossem sensíveis e entendessem que a solução mais rápida é anistiar o instituto dessa dívida”, sugere.

No orçamento da instituição pesam os parcelamentos negociados para quitar as dívidas de FGTS e INSS que não eram recolhidos até 2009 – cerca de R$ 160 mil no total. “Além da renegociação de acordos trabalhistas que haviam sido negociados, mas não honrados”, completa Rosa. O “rombo” total indicado pelo Ministério Público no início da ação era de R$ 350 mil, informa. Todo esse quadro financeiro “arranhou” a imagem do IPC na sociedade. Rosa diz que muitos doadores se afastaram da instituição por isso. E eles são uma das quatro fontes de recursos do instituto.“O IPC se mantém através de convênios com órgãos públicos e privados, de recursos próprios, doações de gênero e através dos moradores que contribuem com 50% do benefício social que recebem”, explica Rosa. Também há os convênios cujos repasses não são fixos, mas para projetos específicos como o “Ver com as mãos”, apoiado pelo programa Criança Esperança. Com as quatro fontes fixas o orçamento mensal do IPC oscila entre R$ 60 mil e R$ 75 mil reais. Equilibrado, diz Rosa, mas que ainda impede investimentos maiores na instituição.


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Para melhorar

 

Mesmo com o orçamento justo, alguns investimentos não foram cortados. Em 2012, por exemplo, R$ 110 mil foram para a renovação de equipamentos. Foram comprados computadores, impressoras Braille, lupas. Só a impressora especial, que fica na biblioteca da escola, custou R$ 60 mil. “Todos os equipamentos são caros. Uma máquina nova para a escrita em Braille custa cerca de R$ 3 mil”, comenta a diretora da escola Idamaris Singulani Costa. A escola tem apenas 16 dessas e são antigas. “Para atender os alunos são suficientes, mas para os programas abertos à sociedade já fica justo e temos que fazer alguns malabarismos para não deixar de atender ninguém”, diz a diretora. Uma das soluções é o uso da Reglete, instrumento mais barato e que, apesar de mais trabalhoso, também permite a escrita em Braille.

Neste ano, o objetivo é conseguir recursos para custear algumas reformas na estrutura dos três prédios que formam o IPC. Segundo o administrador, as construções são antigas e já começam a apresentar rachaduras, vazamentos e problemas de eletricidade. “Há muito tempo não havia preocupação com a manutenção do IPC. Precisamos com urgência desses reparos. Temos muito que avançar.”

 

 


Tags: IPC, curitiba, instituto paranaense de cegos.;



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