Comportamento
03.09.2015
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03.09.2015
09.04.13
O papa do fim do mundo
por Fábio Campana
O papa Francisco é o primeiro jesuíta no cargo (Foto: Gregorio Borgia/AP)
Nomeação do novo papa foi acompanhada de uma sensação de paz e serenidade entre os católicos (Foto: Filippo Monteforte/AFP)
Torcedor de carteirinha: Bergoglio é sócio do San Lorenzo de Almagro, tradicional clube argentino (Foto: divulgação)

Há quem diga que Jorge Mario Bergoglio, o novo papa, tem uma vocação muito grande para o marketing pessoal. Os pequenos gestos de humildade dos primeiros dias do papa Francisco seriam atitudes cuidadosamente estudadas. Sua interlocução simples, direta, com frases do cotidiano. A preferência pelo seu sapato velho, um telefonema para o jornaleiro, uma viagem de ônibus, Os primeiros dias do papado de Francisco dominaram o noticiário sobre o Vaticano e deixaram em segundo plano as denúncias de corrupção e pedofilia.

Estudado ou não, o comportamento de Francisco fez com que a Igreja passasse a ser julgada não só pelos defeitos, mas pelas suas qualidades e pela discussão sobre o seu destino nesta quadra, com a possibilidade de se voltar para os pobres, o que os marqueteiros chamam de “marketing da simplicidade”, fórmula poderosa em países como o Brasil, exaustivamente usado e abusado pelos novos populistas que estão no poder.

Para os especialistas, o Pontífice tem “consciência de que é importante agir dessa forma” num período em que a Igreja atravessa uma crise com escândalos sexuais e financeiros, que atingem dois de seus principais pilares: a ética e a moral. Para ser relevante, qualquer instituição depende hoje de credibilidade. Mas numa instituição religiosa, que fala da fé, tudo se baseia na crença e na credibilidade.

A biografia de Jorge Mario Bergoglio confirma essa capacidade e vocação. Surpreendeu o mundo.

Jesuíta. 76 anos. Moderado. Um pulmão doente. Vida austera. Em Buenos Aires, dispensou todas as mordomias que um arcebispo costuma receber. Anda de ônibus e de metrô. Ouve ópera. Tangos. Lê Borges e Dostoievski. Aprendeu a cozinhar com a mãe. Prepara a própria comida. Torce pelo San Lorenzo de Almagro. Gosta do contato direto com o povo. Defende uma igreja simples, distante dos poderes terrenos, dedicada ao espiritual.

Era tudo o que se sabia logo depois de anunciado o nome do novo papa da Igreja Católica. Jorge Mario Bergoglio, cardeal arcebispo de Buenos Aires, anunciado como papa Francisco.

Os 100 mil fiéis que lotavam a Praça São Pedro ficaram pasmos.  Jornalistas não sabiam de quem se tratava. Nem os padres e freiras emocionados sabiam dizer muito sobre o sucessor do demissionário Bento XVI, Jorge Mario Bergoglio, o homem que aceitou a missão de restaurar uma igreja que passa por sua maior crise na era moderna.

Deu-se então a empatia que aproximou o primeiro papa de fora da Europa em 1,3 mil anos com a multidão. Em cinco frases, ditas com humildade e a calma que o caracteriza desde os tempos em que trabalhava com favelados na Argentina, ganhou o olhar afetuoso do público.

Em vez de uma série de palavras em latim, como o ritual prevê, um simples “boa noite” em italiano. A cruz de ouro ficou de lado: a preferência é pela cruz de madeira, usada há anos pelo arcebispo de Buenos Aires.

— Foram buscar um papa no fim do mundo, disse, e pediu que orassem por ele.

Houve uma sensação de paz, de serenidade, entre os católicos que se asseguraram de que a Igreja está entregue a um homem capaz de mudar seu rumo e devolvê-la a sua missão fundamental:

— Se não confessarmos Jesus, somos uma ONG piedosa, mas não a Igreja.

Com essa frase, o admirador de São Francisco de Assis confirmou a sua carreira de vínculos mais fortes com a atividade pastoral do que com trabalhos administrativos. A multidão notou.

Mas, afinal, quem é esse homem lembrado por especialistas como eleitor importante, mas jamais como provável sucessor do papa emérito Bento XVI?

Filho de italianos, o novo papa começou a carreira como técnico químico. Desistiu pouco depois para abraçar o sacerdócio. Em 1958, entrou para a Companhia de Jesus. Passou alguns anos estudando ciências humanas em Santiago do Chile e voltou à Argentina em 1964 para ensinar Literatura e Psicologia em um colégio.

Bergoglio queria mais. Foi à faculdade de Teologia, em San Miguel de Tucumán, no norte. Enquanto a Argentina vivia uma situação política difícil, Bergoglio cuidava de igrejas em cidades pequenas e ensinava a padres menos cultos.

Seus críticos e detratores dizem que a falta de combatividade nessa época mancha seu currículo. Ele alega, em sua biografia, que o papel exercido dentro da Igreja também era importante para libertar a Argentina do regime militar. Há depoimentos sobre seu empenho e não são críveis as acusações de que colaborou com a ditadura argentina. O ativista argentino de direitos humanos Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1980, negou que o cardeal Jorge Mario Bergoglio, o novo papa Francisco, tenha vínculos com a última ditadura militar no país (1976-1983). Disse que alguns bispos foram cúmplices da ditadura, mas não foi o caso do novo pontífice.

— Questionam Bergoglio porque dizem que ele não fez o necessário para tirar dois sacerdotes da prisão, sendo ele o superior da congregação de jesuítas. Mas eu sei pessoalmente que muitos bispos pediam à junta militar a liberação dos presos e sacerdotes e não eram atendidos.

Voltemos à trajetória pastoral de Bergoglio e compreenderemos algumas reações da esquerda ao arcebispo de Buenos Aires. Inflexível em questões de princípio, Bergoglio sempre foi um forte opositor do casamento entre pessoas de mesmo sexo e da legalização do aborto. Repudia totalmente o aborto, mesmo em caso de estupro. Temas caros a uma boa parcela da esquerda que o vê como conservador ou “reacionário”.

Em setembro de 2012, quando a Suprema Corte regulamentou o aborto em Buenos Aires, o cardeal Bergoglio afirmou que a decisão era “lamentável”. Antes, o arcebispo de Buenos Aires tinha advertido por meio de um comunicado: “Nota-se mais uma vez o avanço deliberado da limitação e eliminação do valor supremo da vida, ignorando o direito da criança de nascer”. Lembrou, também, de um documento publicado na Conferência Episcopal argentina: “Aborto nunca é solução”.

Sua ascensão na carreira só veio em 1992 como bispo de Auca. O caminho para Buenos Aires, a principal arquidiocese do país, era também improvável. Mas uma doença do titular o levou à capital como bispo auxiliar, em 1997. Pesaram para sua indicação a notória capacidade pastoral, o conhecimento teológico aplicado ao jeito de ser na América Latina e sua simplicidade – algo que ao menos 77 cardeais eleitores notaram.

Em 1998 tornou-se arcebispo. O então papa João Paulo II, de quem Bergoglio é um admirador, fez dele cardeal pouco depois. Desde então é um religioso que se tornou um peso-pesado político ao mesmo tempo em que investe energia em obras sociais, como fez ao longo de toda a vida.

Mas não esperem algum tipo de revolução dentro de Igreja. Bergoglio é um crítico do poder do casal presidencial argentino (o falecido ex-presidente Néstor Kirchner o chamou de “chefe da oposição”), do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da distribuição de anticoncepcionais gratuitos.

Ainda assim, ousa ao chamar de hipócritas os religiosos que não lembram que Jesus Cristo deu banho em leprosos e fez refeições na companhia de prostitutas. Foi esse perfil mezzo moderado mezzo conservador que lhe permitiu em 2005 rivalizar com o teólogo Joseph Ratzinger.

Bergoglio tem hoje apenas dois anos a menos que Ratzinger ao assumir o papado em 2005 (o argentino completa 77 em dezembro). Sinal de que mais um pontificado de transição vem por aí. E de que talvez os 114 outros cardeais não estivessem dispostos a fortalecer o poder do grupo conservador “Comunhão e Libertação”, representado por Angelo Scola, arcebispo de Milão e favorito nas furadas bolsas de aposta.

Nos dias que se seguiram, o papa Francisco manteve a postura de humildade que pretende se torne referência de comportamento para toda a Igreja. Quem esperava um pronunciamento lido em tom solene, típico de um Sumo Pontífice em sua primeira missa, teve mais uma surpresa. Na Capela Sistina, diante dos 114 cardeais que participaram do conclave, ele adotou um tom informal, gesticulando e olhando nos olhos de seus interlocutores. Em sua homilia, o novo papa adotou um tema que parece servir como conclamação a uma Igreja em crise: o movimento.

— O primeiro movimento é o caminhar. O segundo é o trabalho de edificar a Igreja. E o terceiro é a confissão. Caminhar, edificar, confessar – disse o papa. – Caminhamos na luz do Senhor. Isso foi o que primeiro Deus disse a Abraão: Caminha na minha presença. Nossa vida é um caminho, e quando paramos, as coisas não acontecem. Caminhar sempre na presença do Senhor, na luz do Senhor.

A multidão na Praça São Pedro viu a cena pelos telões, incrédula: o papa Francisco cumprimentando um a um os fiéis ao final de uma missa na Igreja de Santa Ana, dentro do Vaticano. Passou a mão na cabeça de um garoto e pediu: “Reze por mim”. Pouco depois, apareceu no balcão da Basílica de São Pedro para abençoar mais de 150 mil pessoas, nas contas do Vaticano. Foi sua primeira oração do Angelus.

— Digo a vocês humildemente: a mensagem mais forte do Senhor é a misericórdia. Deus jamais se cansa de nos perdoar. Nós é que nos cansamos de pedir perdão. Temos de aprender a ser misericordiosos com todos – pediu o Pontífice, que falou de improviso. – Um pouco de misericórdia torna o mundo menos frio e mais justo.

E que “Deus perdoe” os cardeais que o elegeram, segundo o próprio eleito. O papa Francisco, primeiro jesuíta no cargo, já alterou bruscamente a dinâmica do Vaticano.

O carro oficial do pontífice não saiu da garagem. Logo depois de eleito, o papa preferiu retornar à Casa Santa Marta no mesmo ônibus no qual chegou com seus cardeais, segundo os porta-vozes do Vaticano. O argentino de 76 anos escolheu um carro de polícia para ir à Basílica de Santa Maria Maggiore, sua primeira visita como chefe da Igreja Católica.

Na saída, voltou ao local onde se hospedou antes do conclave. Buscou sua bagagem, cumprimentou os funcionários e pagou a conta do próprio bolso. O objetivo: “dar exemplo”, segundo o Vaticano. E lembrar São Francisco de Assis, que viveu uma vida de pobreza.

A comitiva modesta para ir à basílica no centro de Roma permitiu que fosse visto e cumprimentado por crianças de uma escola da região. Os seguranças ainda estão se adaptando ao novo estilo, bem mais pastoral do que o do teólogo e antecessor, papa emérito Bento XVI. A prerrogativa de determinar a distância que terá com o povo cabe inteiramente a Bergoglio e ele não deu sinal de que mudará muito por causa do cargo.

“O estilo dele já nos deixa estupefatos”, disse o chefe da assessoria de imprensa vaticana, padre Federico Lombardi, também jesuíta. “Nós temos mais um sentido de servir, de obediência, não de governar dioceses. Que dirá toda a Igreja. Não estávamos preparados psicologicamente.”

Em Buenos Aires, ele costumava tomar ônibus e metrô. Passou grande parte da vida trabalhando em favelas. Talvez o cargo de Sumo Pontífice o impeça de ser tão informal, mas que o choque de cultura no Vaticano já começou não há dúvida.

Dias agitados esperam a Cúria Romana, administração da Igreja Católica envolvida em denúncias que vão da corrupção ao acobertamento de pedofilia.

Talvez os outros cardeais não vissem no arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, um candidato capaz de reformar a Cúria Romana porque tem vínculos demais com ela. E talvez os outros postulantes não oferecessem a certeza de que saberiam dosar a conciliação para pacificar a Igreja, envolvida em uma das maiores crises de sua história.

A única certeza que se tem após a vitória de Bergoglio é de que virão mudanças. Francisco mostrou os sinais e o caminho.


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