Comportamento
03.09.2015
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03.09.2015
03.09.2015
05.06.13
Quando a noite cai
por Murilo Basso

Pacato durante o dia, São Francisco, bairro histórico de Curitiba, sofre com contrastes sociais durante a madrugada

Fotos João Le Senechal
Por trocados, moradores de rua guardam carros: contraste social é encarado com naturalidade (Fotos João Le Senechal)
Rapaz desacordado em meio a transeuntes: cena é parte do cotidiano da região (Fotos João Le Senechal)
Garotas de programa em habitual ponto de prostituição na região (Fotos João Le Senechal)
Imóveis depredados e baixo policiamento provocam insegurança em moradores (Fotos João Le Senechal)

Dentro de dois meses José completará 19 anos. A família ainda mora no Estado de São Paulo, em algum lugar próximo a Guarulhos, diz ele, demonstrando insegurança com as recordações. Hoje, sua casa é um canto escuro da Rua Quari, nas imediações do Cemitério Municipal – no entanto, enquanto gesticula com os dedos de forma desconexa, ele garante que não se estabelece no mesmo local por “mais de três ou quatro dias”.

José desembarcou em Curitiba há pouco mais de um ano. A escolha do destino foi, como ele mesmo define, casual: o dinheiro que restava na carteira surrada que carrega até hoje era o suficiente para uma passagem para a capital paranaense. “Cheguei na rodoviária do Tietê e perguntei qual o lugar mais longe que poderia ir com R$ 60. A moça falou Curitiba e eu vim!”. O motivo para a fuga é semelhante a inúmeros casos de moradores rua: viciado em crack, foi expulso de casa pelo pai.

“Era tenso. Um dia encheu o saco e, apesar da minha mãe, pensei ‘foda-se’ e me mandei. Sei que tô morrendo aos poucos, mas não consigo parar. Ou talvez não tenha mais uma motivação forte para tentar, saca? Não tenho mais família. Agora minha família são os moleques da rua. Eu já tô no inferno mesmo, não tem como piorar”, reflete.

À noite, para sustentar o vício, José “cuida” de carros estacionados próximos aos bares da região. No trajeto até seu “trabalho”, enquanto caminha pela Avenida João Manoel até a Trajano Reis, interrompe a caminhada para conversar com o que chama de “parceiros da noite”. Ele divide as ruas com mais “um ou dois parças”, para que no final do “expediente” se encontrem e dividam o lucro. “Hoje é terça, não vai dar para tirar muito. No máximo uma pedra para cada um de nós”, comenta. “Mas ainda tá tranquilo. No inverno que é foda! Mano, se tu não descolar bastante bagulho, morre congelado. É um frio do caralho nesta cidade!”.

Nesta noite, José fica encarregado das ruas Paula Gomes e Almirante Barroso. Ele faz rondas de 10 em 10 minutos, não gosta de “ficar parado”. Aborda as pessoas sem receios, deixa claro que qualquer moeda serve e diz não se intimidar mais com as diferenças sociais entre ele e o público que frequenta os bares da região.

“A gente cuida dos carros mesmo, tá ligado? Mas o lance é que os malucos têm medo, a pessoa dá o dinheiro porque acha que se não der nada eu vou lá riscar o carro dela, ou amassar a lataria. Mas mano, te juro, nunca risquei um carro”, pondera. “Às vezes, quando tá foda e se os malucos tratarem a gente mal, a gente vai lá e estoura o vidro, pega um som e o que tem dentro. Mas é bem raro. Já roubei, mas não sou bandido, sabe? Só ando no meio. É que preciso disso, tá ligado?”

No final da noite, por volta das 3h da manhã, José e os amigos dividem o resultado do trabalho. A moeda no grupo não é o real, mas a “pedra”. “Te falei, só rolou uma para cada e um pouco pro ‘rango’. Mas para um dia como hoje tá tranquilo”, diz.

Já mais à vontade, minutos antes de se despedir, ele relembra o passado. “O crack te deforma. Não dura um mês e você já tá fraco, definhando, parecendo um zumbi. Tá ligado naquela Zombie Walk que tem por aqui? Então, a gente fica tipo aquilo. Apodrece o dente, é uma bosta”. Aproveito e pergunto se ele prefere a movimentação da noite ou agir em lugares mais calmos, já que a recente polêmica no bairro envolve o fechamento de alguns bares e a consequente redução da vida noturna na região. “Tipo, se fechar o bar e ficar escuro é melhor para a gente. Mas também não faz diferença, a gente é tratado que nem boi. Se nos chutarem daqui, a gente arruma outro lugar e pronto.”

Histórias como a de José se repetem nas esquinas do bairro. Outro dia se passou, e desta vez a noite ainda não chegou quando flagramos um pequeno grupo fumando sentado na Praça do Gaúcho, a cerca de 200 m de um módulo policial. Alguns minutos depois é possível observar um garoto acendendo um cachimbo encostado no muro de uma residência. Mais adiante, outro jovem não demonstra receio e fuma próximo a um ponto de ônibus. Mas é na esquina da Duque de Caxias com a Barão de Antonina que outro grupo chama a atenção.

Renata tem 24 anos de idade e sua relação com o crack começou seis anos atrás.  Em uma festa, uma amiga ofereceu a droga. Na época, a jovem morava com os pais, no CIC. Cerca de seis meses após o primeiro  contato com o crack ela abandonou os estudos e saiu de casa. Hoje se prostitui nas ruas do bairro para sustentar o vício. Ela conta que, para sua segurança, “trabalha” com mais duas amigas. Elas também se refugiam em hotéis baratos e, vez ou outra, em casas abandonadas. “A gente não tem prática para roubar, então foi o jeito que encontramos para conseguir dinheiro”, diz ela, explicando como encontrou o caminho da prostituição. “Eu poderia ganhar muito dinheiro, se não gastasse tudo logo em seguida”, completa. Ela atende em motéis, no carro do cliente e até mesmo em terrenos abandonados. Ela revela conseguir entre R$ 200 e R$ 300 por noite. “Chego a transar seis, sete vezes durante a madrugada”. Renata conta que, desde que deixou a família, passou por quatro tentativas de reabilitação, mas se frustrou em todas. “Não tem como aguentar. Você fica sem contato nenhum com o mundo. Entre não ter nada e ao menos ter as ruas e o crack, eu prefiro a segunda opção.”

Maria faz parte do grupo de Renata. A infância se assemelha a uma história que só poderia acabar nas ruas: teve a mãe assassinada, se envolveu com o tráfico e passou fome. Hoje, castigada pelo tempo, não encontra mais lembranças tão claras em suas memórias. Não consegue precisar quando o vício começou, mas lembra que as drogas já a levaram a São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. “Vou para o lugar que o bagulho for mais louco e mais fácil. E para onde me pagarem mais”. Ela conta que foi internada várias vezes, a maioria involuntariamente. Diz que chegou a gastar entre R$ 300 e R$ 400 por dia para comprar a droga. No início do período como viciada, vendeu som de carro, os aparelhos de televisão de sua casa e objetos pessoais. “Quando você volta para a sociedade, percebe que parou no tempo, e não há mais volta”, explica. Antes de parar nas ruas, chegou a fumar quinze pedras em um dia. Após alguns meses conseguiu deixar o crack de lado, retornou ao emprego, mas ao receber o primeiro salário, teve uma recaída. Hoje, em meio a lembranças escassas, não encontra mais esperanças. “Que diferença faria se eu morrer? Se eu morrer, outra assume meu lugar. Não adianta, não tem fim”.

 

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Outro lado: à noite, calmaria dá lugar à insegurança

 

Na região do São Francisco se instalaram os primeiros moradores da capital paranaense. As construções iniciais ocorreram em direção à atual Praça Tiradentes, e então o ar residencial ganhou as redondezas. As ruínas são o que restou de uma obra inacabada: a Igreja de São Francisco de Paula – já as pedras, que seriam destinadas para essa construção, acabaram sendo utilizadas para erguer as torres da antiga Igreja Matriz.

Hoje, o clima pacato dura até o anoitecer. Pela manhã é possível ver o retrato do descaso enquanto Osvaldo, gari há 23 anos, recolhe o lixo. “Hoje ainda tem pouco. Agora dá uma olhada aqui às 9 da manhã de um sábado. É de dar medo”, conta.

Além da insegurança durante a madrugada, os moradores reclamam das constantes pichações, do forte odor já no início do dia e principalmente da falta de policiamento. Por outro lado, de acordo com dados da Polícia Militar, foram realizadas cerca de 2.200 denúncias na região da capital paranaense no primeiro trimestre de 2013; menos de 20 delas envolvendo uso de entorpecentes no São Francisco, que ao longo de 2012 recebeu apenas 50 reclamações. O bairro também apresenta baixos índices de furto: nos últimos dois anos foram registradas 122 ocorrências, uma média de pouco mais de cinco registros por mês.


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