Cultura
03.09.2015
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24.02.14
Um dia de poesia
por Daniel Conrade

O relato sobre arte, música, rádio e andanças

Menino guarani gotas
Museu do Louvre

Por volta de 2006, talvez 2007, numa das várias vezes que as vozes do rádio me faziam companhia na hora do trabalho, eu alternava inúmeras e pequenas pinceladas ao chio da AM. Não entendo muito do assunto das rádios, mas desde cedo eu gosto de ouvir AM, da maneira poética e de um certo rigor com que os radialistas escolhem as palavras e de como que as apresentam, como mestres do rádio paranaense, Sílvio de Tarso e Sérgio Silva. Para não perder o tom poético do termo, Amplitude Modulation, sempre me causou a sensação de espaço. Assim também é a arte, independente de sua vertente, amplia espaços, horizontes, molda novas lentes às quais podemos ver de maneiras diferentes.

Gosto também do chiado que vem junto e faz crepitar despertando luzes na memória. Pequenas centelhas, como estar à beira de uma fogueira. Certa vez comecei a rascunhar uma carta ao Sílvio e ao Sérgio, agradecendo por fazerem parte do meu dia a dia na produção de várias pinturas ao longo de alguns anos, era para convidá-los a irem ao lançamento de uma obra minha, a Madona de Morretes, na Galeria de Arte Mirtillo Trombini. Mas, chegando ao segundo ou terceiro breve parágrafo parei de escrever, rasguei a carta, temendo que achassem alguma infantilidade da minha parte, talvez por receio de que eu não estivesse à altura para convidá-los a uma singela exposição em uma pequena cidade litorânea. “A dúvida é o preço da pureza”, como disse em canção o poeta e compositor Humberto Gessinger. Talvez sim. A timidez é um tipo de pureza. Talvez boa, ou não.

Foi numa dessas do rádio, alternando pinceladas no cavalete, aos chios e interferências provocadas por longínquos relâmpagos, que davam uma noção de em quanto tempo a chuva chegaria, com a interferência causada por algum avião que cortava perpendicularmente o alcance da onda, que ouvi a voz do escritor, poeta, editor e historiador Fábio Campana. Eu pintava então uma aquarela com tema indígena, ele falava sobre a passagem pelo Brasil de Don Alvar Nuñez Cabeza de Vaca e sua expedição espanhola atrás da tão sonhada fonte da juventude e de riquezas que diziam haver neste Novo Mundo. Ele dizia também da beleza do mundo indígena. Foi aí que surgiram os primeiros versos do poema, intitulado Milagre, que anos depois eu conseguira terminar:

 

“Sobre um cavalete, pode-se cavalgar,

ir longe, atravessar o continente.

Sobre uma tela, pode-se assistir o passado

e, ao mesmo tempo, prevê-lo.

Pode-se riscar os medos

e amar sem risco.

Usar a vida ou a morte como modelo.”

 

A cada traço, era como ver a trajetória e os antigos caminhos nas palavras do Fábio Campana. Talvez esta seja a beleza maior do rádio, de te dar espaço para introduzir a si mesmo no que se ouve. Hoje, nas FMs, dificilmente há espaço para a imaginação, em meio a propagandas que metralham sua mente e coisas estúpidas ironicamente chamadas de música. Pena que na maioria massiva das FMs é assim (Frequency Modulation, para não perder a falta de poesia que me remete agora o termo. Onde hoje fazem delas frequências fechadas, te obrigando botar um monte de porcarias goela abaixo, ao ritmo de pancadas cariocas e grunhidos universitários paranaenses). Não é generalizar, mas a maioria é fast food mesmo. Evito fast food, não sinto prazer quando como. Dificilmente sinto prazer quando ouço rádio FM.

Havia tanto espaço para a imaginação nas palavras do Fábio Campana que até pude ver a exuberância da floresta nativa, a beleza e o colorido dos povos ancestrais, a travessia pelas correntes dos rios. Senti vontade de conhecê-lo, de ver a pessoa e os olhos atrás da voz que chegava através dos alto-falantes. Gosto de olhar nos olhos das pessoas quando as ouço. Ou imaginar.

Por ironia do destino, um grande amigo e grande fotógrafo, o Nego Miranda, numa de nossas conversas sobre edição de livros, ele cita e me passa o contato do Fábio, dizendo que eu deveria conhecer a Travessa dos Editores e, quem sabe, poderia oferecer algum trabalho como ilustrador. Peguei o telefone e liguei algumas vezes de um orelhão, pois nem sempre havia sinal de celular no sítio onde eu morava com minha família, à beira do rio Marumbi. Telefone fixo não chegou por lá até hoje. Internet então, só no ano passado e via rádio. Quem lê isso pode estar pensando: – Também, ele não morava, se escondia! Talvez sim, mas sinto me esconder cada vez mais na capital. Cada vez mais minhas roupas variam de tons de cinza para no máximo tons de cáqui. Antes havia alegria em vestir colorido, não era diferente das saíras-sete-cores. Hoje sinto que o concreto (com licença poética, por favor) me pardalisou.

Pena que não deu para coincidirmos um encontro ou reunião. Logo em seguida, recebi uma bolsa onde pude passar um tempo em Paris (FRA), dando aulas particulares de desenho e pintura a dois dos quatro filhos da Dra. Selma e do Dr. Roberto Ferraz, aos irmãos do meio e artistas, Rafael e Paulo. No retorno, dediquei-me à elaboração de retratos em óleo sobre tela e em outras técnicas, aproveitando as encomendas que surgiram, deixando o sonho de ilustrar para o mercado editorial de lado. Feliz ou infelizmente, nunca tive o luxo de entrar em crise criativa. Criar sutilezas mesmo aos trancos da vida, para quem os tem, não é tarefa fácil, é para poucos.

 Em Paris, pude visitar obras de valor imensurável dos grandes mestres, coisas que eu só podia ver através de livros de amigos, pois não dava para gastar com livros de arte, eram muito caros, há pouco tempo foi que começaram a baixar de preço. Visitei todas as salas abertas do Louvre, levando 8 dias para tal. Só não visitei as que estavam fechadas para manutenção, nos meses de setembro e outubro de 2007. Sinto o cheiro das salas e sonho com as imagens até hoje. Quem sabe um dia eu possa voltar lá.

Enfim, seis anos depois, morando agora em Curitiba, há dois precisamente, me ‘deu na telha’ de entrar em contato com o Fábio. Vi um compartilhamento de uma publicação dele no Facebook que algum amigo fizera. Solicitei para que me adicionasse. Ele aceitou, apresentei-me e ele passou novamente o seu número. Em poucos dias eu estava na Travessa dos Editores mostrando o meu trabalho, que hoje não fica mais só no campo das imagens, transita também pelas palavras. Fábio recebeu-me com muita atenção, demonstrando grande sensibilidade. Leu alguns dos poemas e ficou feliz em ver as ilustrações.

Enchemos os olhos de ternura ao falar dos rios de Morretes. Difícil é ver hoje quem encha os olhos de ternura ao falar de, simplesmente rios, pequenos, de Morretes então... A onda agora é só o mar, ainda mais de continentes alhures, ao deleite dos megarresorts, posando para fotos, e só isso. Creio não ser possível conhecer um lugar somente passando por ele.

Fábio disse ter predileção por rios pequenos, singelos. Imaginei os da minha infância e os da poesia de Manoel de Barros, que eram como vidros moles que faziam a curva atrás de casa... Ele disse ter conhecido o Manoel de Barros, acredite, na feira da Praça Osório em Curitiba! Põe uma dúzia de “!!!” nisso! A vida tem dessas coisas, hora certa, lugar certo, sintonia... Frequency Modulation? Creio que não, prefiro crer em Amplitude Modulation. Manoel de Barros diz que a poesia aumenta o mundo. É, quando nos abrimos a ela, à amplitude das pequenas coisas, o que era uma frequência isolada, amplia-se, dentro da gente e tudo ao redor.

Conversamos até sobre Nísia Floresta Brasileira Augusta, poeta brasileira, nascida no Rio Grande do Norte, primeira feminista da América Latina, que conviveu em Paris com escritores do seu tempo, entre eles Auguste Comte. Fundadora do Colégio Augusto, para mulheres no Rio de Janeiro, entre os anos de 1840 e 1850. Ele disse que tinha conversado sobre a Nísia Floresta com uma pessoa só na vida, com o escritor Décio Pignatari. Senti-me honrado. E muito. Lembrei de mim mesmo lendo à noite, ao som dos pássaros noturnos e da sinfonia dos grilos próximo à mata. Não sei por que, mas o som dos grilos remete ao piscar das estrelas. Se eu pudesse ouvir o som das estrelas, seria como o som dos grilos. Naquele pontinho de vida havia mais tempo de ler, de enriquecer minha alma. Hoje, na capital, com bibliotecas enormes ao alcance, internet e wi-fi, quase não consigo beber destas fontes. Isso quebra o paradigma de que numa capital se pode ter mais acesso à informação (...). 

Mesmo assim, Fábio Campana me presenteou com algumas dezenas de livros publicados pela Travessa, que os trouxe para casa numa grande caixa de papelão, feliz que nem criança. Lembrei-me de quando ganhei de presente um trenzinho a pilha que acendia a luz e saía fumaça da chaminé. O cheiro dos livros novos parecia muito com o do papel de presente da infância. Papéis têm essa magia. Dentre os livros, O Último Dia de Cabeza de Vaca, um dos quatro derradeiros exemplares que ele tinha em sua estante, o livro está esgotado por hora, está a caminho de uma reedição.

A caixa cheia de livros que recebi de Fábio Campana não continha o trem a pilha, mas trouxe a mesma felicidade e a certeza de seguir viagem, ir longe, atravessar o continente, visitar outros mundos através da leitura. Onde uma nova partida foi em um dia de poesia... Para a vida inteira.      


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