Cultura
03.09.2015
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03.09.2015
06.05.14
Voz do Brasil
por Dédallo Neves

O Brasil perdeu a imponente voz de Luciano do Valle

Luciano do Valle recentemente, já na rede Bandeirantes. Foto: Divulgação
Ary Barroso com seu revolucionário instrumento: a gaitinha
Osmar Santos, o locutor das Diretas Já!, ao lado de Sócrates, Fernando Henrique Cardoso e Casagrande

Feriado de Páscoa ressuscitou à memória dos brasileiros dois nomes, não que eles estivessem esquecidos, mas ajudou a potencializar a lembrança de Gabriel García Márquez, escritor, jornalista e talentoso autor de narrativas como Ninguém Escreve ao Coronel, Memória de Minhas Putas Tristes, Amor nos Tempos do Cólera, além dos contos de Os Funerais de Mamãe Grande ou de reportagens como a Aventura de Miguel Littín clandestino no Chile; e do narrador, jornalista e talentoso Luciano do Valle, incentivador do esporte, e não só do futebol, brasileiro. Na sua voz pudemos ouvir lances, pontos, voltas inesquecíveis. A morte de Luciano do Vôlei, como ficou conhecido pelo apoio dado ao esporte na transmissão em televisão aberta, atiçou a lembrança de vozes do Brasil, cuja fronteira não está entre as sete e as oito nos rádios dos brasileiros.

O rádio e a televisão brasileira há muito que fazem gols bonitos, espetaculares, inacreditáveis, de outra galáxia, geniais, é essa supervalorização que os locutores, principalmente do rádio, fazem. Quando ouvimos um “quaaaaaaase” pelo rádio não há como saber se esse quase foi perto da trave do gol ou da trave da bandeirinha do escanteio, qualquer coisa que passe entre esses dois paus é quase gol, ou ainda aquela “bomba”, que o locutor grita, está mais para um rojãozinho, o camisa 10 pode ter chutado um tufo de grama junto fazendo a bola rolar para a linha de fundo de tal maneira que dá até para ler a marca da bola, o rádio tem dessas coisas, o locutor trabalha com a emoção do fanático torcedor. Com a televisão é diferente, como competir com a imagem? Como tornar um gol simples da décima rodada do Campeonato Brasileiro, cuja emoção não é das maiores, naquele surpreendente gol? Naquele gol espetacular, genial, de outra galáxia? É difícil. Mas os narradores têm técnica, gritam, berram ao microfone, detalham a jogada, superestimam o atacante e a voz é tão importante quanto no rádio. Não tem como mentir, valorizar em demasia. No rádio, qualquer passezinho na intermediária é preciso de um “Zé rolou vem pelo meio carrega entrega para Geraldo que domina espirrado recua pro zagueiro Edu o atacante pressiona Edu recua pro goleiro o passe foi curto o atacante vai chegar antes olha a chance de gol olha a chance de gol isooooola o goleiro Manuel”, assim mesmo, sem vírgulas ou pausas. Na televisão isso não passaria de um “Zé passa pra Geraldo, a bola chega ao Edu, Manuel tenta o lançamento, mas a bola vai pra fora” e daria tempo do merchandising ainda. Por isso que transmitir um gol ou um jogo pela televisão exige muito mais – e paradoxalmente muito menos, uma vez que não há necessidade de estar o tempo todo a falar.

Luciano do Valle superou isso, pois além de ter sido um ótimo narrador de jogos de futebol, ousou trabalhar com outros esportes, trouxe para o canal aberto esportes que não são paixões nacionais – ou ao menos não eram. Se transmitir um gol pela televisão a tarefa é árdua, uma cesta, um ponto, uma bola encaçapada era impossível. Para tanto, a peleja foi longa, começou com 16 anos no rádio, em Campinas, cidade em que nasceu, a televisão, conheceu na década de 1970, a passar pela Rede Globo, Rede Record e Rede Bandeirantes, foi o narrador principal na Globo a transmitir vários jogos e corridas de Fórmula 1. Na Band promoveu pico de audiência com luta de boxe de Maguila, atleta que recebeu incentivo do próprio jornalista. Além também de ser técnico da seleção brasileira masters, dirigiu a velha guarda futebolística: Pelé, Rivellino, Gérson, entre outros; em 1983 organizou no estádio do Maracanã um jogo de vôlei entre Brasil e União Soviética memorável. Nas palavras de Milton Neves, Luciano do Valle reunia as melhores características de um narrador e era o melhor do país.

Luciano do Valle, do Vôlei, de todos os esportes, não foi o primeiro a desfalcar a cabine de transmissão, outros nomes de relevância que deram suas contribuições também nos deixaram na mão. Pouco divulgada é a faceta esportiva de Ary Barroso, conhecido pelo “Brasil, meu Brasil brasileiro”, o inaugurador do samba-exaltação também foi locutor. Não revolucionou só a música brasileira com sua Aquarela do Brasil ou com suas composições consagradas por Carmen Miranda no cinema, foi revolucionário também no jeito de transmitir jogos com sua gaitinha a anunciar os gols e entrevistas com jogadores após as partidas, que até então não eram feitas. Ary Barroso foi um locutor peculiar porque, além de gaitinhas e entrevistas, não transmitia seus jogos com o maior profissionalismo quando o Clube de Regatas Flamengo estava em campo. Era um rubro-negro fanático, abandonava a transmissão para comemorar com seu time, sua torcida, seus jogadores os gols e as vitórias. Curioso notar que um dos seus principais parceiros na música, Lamartine Babo, compôs os hinos do Vasco, Botafogo, Fluminense e também do Flamengo.

Outro que está na memória dos ouvintes do rádio é Osmar Santos, ainda vivo, no entanto, afastado dos microfones por causa de um acidente de carro em 1994 que deixou sequelas na voz. Mas Osmar está bem vivo, “O Pai da Matéria”, como ficou conhecido, foi homenageado este ano com um de seus bordões, “Gorduchinha” é o nome da bola da Penalty a fazer referência ao “ripa na chulipa, pimba na gorduchinha” tantas vezes pronunciado na rádio Globo, lugar onde se destacou. Narrou a Copa de 1986 pela Rede Globo como primeiro locutor, junto com Galvão Bueno – segundo locutor. Além do futebol, foi também o locutor dos comícios da campanha Diretas Já!.

Ironicamente, Luciano do Valle parte no ano em que a Copa acontecerá no Brasil, como foi também tão irônica a morte do locutor Fiori Giglioti, cuja morte se deu um dia antes da Copa da Alemanha. O Brasil tem, entretanto, muitos outros locutores que farão jus à morte de Luciano: Milton Leite, Jota Jr., Silvio Luiz, Galvão Bueno, Nilson César.

Assim como a morte de Gabriel García Márquez abre um buraco na literatura, a morte de Luciano do Valle abre um buraco no jornalismo esportivo, e há perdas que são irreparáveis, insubstituíveis. Gabo para a palavra escrita, Ary para a palavra cantada, Luciano para a palavra falada, são essas as perdas. 


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