Cultura
03.09.2015
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24.07.14
As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá
por Adriana Sydor
Ilustração de 1881 de John Gerrard Keulemans, Uirapuru-Verdadeiro. Crédito: Dominio publico
Sabiá no palco. Foto: Dario Sanches
Asa Branca, inspiração do folclore nordestino que encantou Luiz Gonzaga. Crédito: Dario Sanches
Urubu, nome de disco e inspiração de música. Crédito: Eric Kilby
Tico-tico, que mora ao lado e esbanja-se no fubá ou no farelo

O Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos disponibilizou neste ano sua décima primeira edição da lista de aves do Brasil. Entre residentes, vagantes, possíveis só em cativeiros e visitantes sazonais, elas são muitas e estão todas lá registradas e nomeadas com o latim nosso de cada táxon: 1.901 tipos diferentes.

Esse espanto de número que assim, solto, serve para competição mundial de recorde com Colômbia e Peru, tem importância natural, sobrenatural, em nossa música. Muitos foram os compositores que se maravilharam com as penas e plumas que, em sinfonia muito particular, cederam ideias e inspiração.

É claro que nem todos os 1.901 tipos têm canto poético e sãocapazes de comover o mais sensível dos ouvidos, mas a quantidade garante que aqui e ali, lá e acolá, volta e meia, um passarinho sopre notas ou faça pose ou mostre cores ou revele comportamento para que umtrovador registre e nos traduza.

Nosso mestre dos mestres, o compositor número um dessas bandas, Heitor Villa-Lobos foi o grande ornitólogo da pauta. Com todos os poros disponíveis à natureza e seus sons e mistérios, ele oficializou e decretou, dentro de sua genialidade, que o caminho para trazer os cantos de pássaros para a música estava aberto – não como temática, mas como som, como possibilidade estética, formal, nota por nota. O uirapuru, que tem aquele fantástico poder de fazer calar os bicos alheios em cantos que se demoram por dez minutos em míseros 15 dias por ano,deu nome ao poema sinfônico que Villa compôs em 1917. Lá dentro, lendas, histórias, tramas, lamentos; por fora, timbres e tons traduzidos para linguagem dos músicos que em alguns momentos denunciam a voz do pássaro.

Maravilha atemporal que serviu de afirmação à nossa identidade amazônica e de comoção para o futuro.

“Você sabe que o Villa-Lobos era profundo conhecedor de passarinhos? Ele conhecia esses passarinhos todos que eu estou falando. De vez  emquando, euescutoumasinfonia do Villa, e o passarinhoestálá. Eleaparece no meio da melodia, no tom certo.Villa-Lobos tinhaouvidoabsoluto. Então, elesabeaquilodesdepequeno. E foi  criadoaqui no Brasil, que era umafloresta!” A entrevista de Tom Jobim para o livro 3Antônios e 1 Jobim coloca os interesses de seu declarado mestre como seus também e por toda sua obra é possível encontrar as aves cantantes em melodia, em tema ou em metáfora. Alguns exemplos: Gávea havia sido composta para a soprano Maria Lúcia Godoy e depois de dar uma voltinha pelas mãos de Chico Buarque, virou Sabiá,aquela que foi vaiada no III Festival Internacional da Canção.Há também Passarim e Pato Preto intitulando canções, mas em muitas outras, em que não estão no nome, os pássaros de Jobim figuram como importantes personagens, como por exemplo a denúncia em Águas de Março: “Passarinhonamão, pedra de atiradeira /É umaave no céu, é umaave no chão” ou a citação em Chovendo na Roseira: “Olha um tico-ticomoraaolado /E passeando no molhado/ Adivinhou a primavera” ou os pedidos em Borzeguim: “Deixa o mato crescer em paz [...] / O jacujátávelhonafruteira/ O lagartoteiútánasoleira/ Uirassufoirever a cordilheira/ Gaviãogrande é bichosemfronteira/ Cutucurim /Gavião-zão”. E por aí vai...

 

Como um mestre inspira o outro, Chico Buarque também atentou ao seu maestro soberano e, ao lado de Francis Hime, fez alerta às aves sobre os perigos do bicho-homem: “Ei, pintassilgo/ Oi, pintaroxo/ Melro, uirapuru/ Ai, chega-e-vira/ Engole-vento /Saíra, inhambu/ Fogeasa-branca/ Vai, patativa/ Tordo, tuju, tuim/ Xô, tié-sangue/ Xô, tié-fogo/ Xô, rouxinolsemfim/ Some, coleiro/ Anda, trigueiro/ Teescondecolibri/ Voa, macuco/ Voa, viúva /Utiariti/ Bicocalado/ Tomacuidado/ Que o homemvemaí”. Depois da letra pronta, Francis voltou à melodia e arranjou os metais para dar piados à música.

Os homens ligados à natureza conhecem o ritmo da vida em outra escala. Luiz Gonzaga, a partir de um tema folclórico e ajustes de Humberto Teixeira na letra, levou o voo da Asa Branca, como sinônimo de tempos ruins do Nordeste e saudade,para muitos lugares do Brasil: “Intémesmo a asabranca / Bateuasas do sertão /Entonceeudisse, adeusRosinha / Guardacontigomeucoração”. E se há pássaro que foge da seca, há aquele que comemora o verde da plantação, caso do Assum Preto, da mesma dupla, que canta cego o seu lamento: “Tudoemvorta é sóbeleza / Sol de Abril e a mataemfrô / Mas AssumPreto, cego dos óio / Numvendo a luz, ai, canta de dor”.

As flautas do choro vez ou outra assobiam feito passarinho, batem asas e contam para o mundo sobre a voz dos que têm penas, talvez por isso o tema seja tão recorrente no gênero: Urubu Malandro, Tico-Tico no Fubá, Tico-Tico no Farelo, Gavião Calçudo e muitos outros.

Há ave que não canta, tipo o Meu Canário, de Jayme Silva, que ficou mudo por conta da desilusão amorosa: “Pelaprimeiravez, euchorei/ Porquefuidesprezadopelomeuamor/ O meubarraco agora ficoudesarrumado /O meucanáriojánãocanta, com certeza se desgostou /Piu-piu, piu-piu, piu-piu / Cantameucanarinho, paraamenizar a minhador”. E tem aquele outro tipo, o que não canta mesmo!, coisa da fisiologia, cantar nem é para todos. Mas essas aves meio desengonçadas que não afinam nota também encontraram espaço na MPB, a Galinha d’Angola e o Pinguim estão lá, a representá-las na Arca de Vinicius de Moraes.

E já que ocupar voz de pássaro para dar recado à pessoa amada é prática recorrente, é bom lembrarde Caetano Veloso, em Sou seu sabiá, que quando Marisa Monte canta, fica ainda mais bonitinha com a flexão de gênero: “Eusou/ Sousuasabiá/ Nãoimportaonde for/ Voutecatar/ Tevoucantar/ Tevou, tevou, tevou, tedar”, e de Vital Farias, que soube bem falar de saudade e surpresa: “Não se admire se um dia/ Um beija-florinvadir/ A porta da tua casa/ Te der um beijo e partir”.

Esta é a terra de muitos canários. Cantadores, assobiadores, declamadores, eles estão por aí,a alegrar nossos dias, como compôs Carvalho e Zapatta para Tim Maia nos explicar: “Nãoprecisa de dinheiro/ Pra se ouvirmeu canto/ Eusoucanário do reino/ E canto emqualquerlugar / Emqualquerrua de qualquercidade/ Emqualquerpraça de qualquerpaís/ Levo o meu canto puro e verdadeiro/ Euqueroque o mundointeiro/ Se sintafeliz”.

 

E temos ainda o Canarinho, aquele da camisa da seleção, mas essa é conversa da edição passada...

 


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