Cultura
03.09.2015
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03.09.2015
03.09.2015
03.09.2015
17.09.14
Tem be-bop no samba
por Adriana Sydor
Aracy Cortes lançou Tem francesa no morro, em 1932
Francisco Alves, o Rei da Voz, gravou pela primeira vez Não tem tradução
Almira Castilho, parceiro de Gordurinha em Chiclete com Banana
Lenine, Jack Soul Brasileiro. Foto: Andréa Farias

Cidade prevista

(Carlos Drummond de Andrade)

Irmãos, cantai esse mundo que não verei, mas virá

um dia, dentro em mil anos,

talvez mais... não tenho pressa.

Um mundo enfim ordenado,

uma pátria sem fronteiras,

sem leis e regulamentos,

uma terra sem bandeiras,

sem igrejas nem quartéis,

sem dor, sem febre, sem ouro,

um jeito só de viver,

mas nesse jeito a variedade,

a multiplicidade toda

que há dentro de cada um.

Uma cidade sem portas,

de casas sem armadilha,

um país de riso e glória

como nunca houve nenhum.

Este país não é meu

nem vosso ainda, poetas.

Mas ele será um dia

o país de todo homem.

Um país aberto ao mundo, sem fronteiras, sem muros, sem barreiras.

É assim que se pinta, aqui e além, a cara da nossa nação. Um pouco por conta de nossas raízes miscigenadas entre portugueses, negros, índios e as colônias do mundo. Um pouco porque é bom, bonito, simpático mostrar-se assim. E um pouco porque aprendemos a repetir o mantra da tolerância e benignidade como um dos nossos maiores bens.

É bonita a nossa vida brasileira assim, a pensar e refletir a incrível mistura de povos que encontram guarida por aqui. É humano, é civilizado, é urbano. Tem um tantinho de fantástico nisso tudo, mas é admirável.

E isso transforma vários aspectos o tempo todo. As áreas mais sensíveis permitem que as influências sejam mais fortes e transformadoras. As mais encalacradas se depositam pedras imutáveis agarradas às raízes, tipo o homem cordial, por exemplo.

De um jeito ou de outro, o fato é que a identidade nacional está postada em alguns assuntos como forma de tradução de nossa cultura. Sabemo-los: o povo, a música, o futebol, a comida... 

Como esta coluna sempre vai buscar na música matéria para as pendengas de pensamento, o convite desta edição é para se divertir com os estrangeirismos que chegam e tomam acento em endereços muito bem marcados – e os chega-pra-lá que eles recebem imediatamente.

A primeira parada é em 1932, quando Assis Valente debochou de parte da sociedade carioca que riscava como exibição de erudição um francês para inglês ver. O sarro tirado em Tem Francesa no Morro é tão perfeitinho que foi grafado da maneira falada e sem necessidade de tradução: “Donê muá si vu plé lonér de dancê aveque muá / Dance Ioiô / Dance Iaiá /Si vu frequenté macumbe entrê na virada e fini por samba / Dance Ioiô / Dance Iaiá / Vian / Petite francesa / Dancê le classique / Em cime de mesa / Quand la dance comece on dance ici on dance aculá / Dance Ioiô / Dance Iaiá / Si vu nê vê pá dancê, pardon mon cherri, adie, je me vá / Dance Ioiô / Dance Iaiá”.  

Um ano depois, Noel Rosa também discursou sobre a influência do que vinha de fora. Tascou a culpa no cinema falado, que começava o seu caminhar por aqui, e já foi logo avisando que algumas coisas nossas não têm tradução, ah!, e algumas não têm mesmo: “Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição / Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês / Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia é brasileiro, já passou de português / Amor lá no morro é amor pra chuchu / As rimas do samba não são I love you / E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny / Só pode ser conversa de telefone”.

As décadas de 1930 e 40 são recheadas de guardiões de nossa língua e costumes. Muitos sambistas vestiram suas principais armas, na grande maioria com as cores da ironia e do bom humor, para defender as coisas nossas. Lamartine Babo, Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa, Assis, Sinval Silva e muitos outros combateram com versos as influências estrangeiras.

Lá no final da década de 50, Gordurinha e Almira Castilho não se opunham à ideia de ter elementos alheios em sua música, desde que fosse via de mão dupla. Aceitavam o que vinha de fora só se pudessem exportar também. A política externa da dupla está por aí até hoje na boca do povo em Chiclete com Banana: “Eu só boto be-bop no meu samba / quando o Tio Sam tocar um tamborim / quando ele pegar num pandeiro e num zabumba / quando ele aprender que o samba não é rumba / aí eu vou misturar Miami com Copacabana / chiclete eu misturo com banana / e o meu samba vai ficar assim”.

Carlos Lyra, mais sério e um tantinho mais chato, discursava pelo início da década de 60 sobre os rumos da Bossa Nova. Queria coisa mais combativa, que tratasse de nossa sociedade sem disfarces. Foi para a UNE, ajudou na fundação do CPC e tratou de questões mais nacionalistas. Mas a bossa estava em seu sangue e ao mesmo tempo em que cantava Canção do Subdesenvolvido criou a deliciosa Influência do Jazz. Na letra, o inconformismo da situação; na música, referências propositais a canções americanas: “Pobre samba meu / Foi se misturando se modernizando, e se perdeu / E o rebolado cadê?, não tem mais / Cadê o tal gingado que mexe com a gente / Coitado do meu samba mudou de repente / Influência do jazz”.

Zeca Baleiro é o rei pop da tiração de sarro desses assuntos. Em 1999 ele compôs Samba do Approach. É difícil não gargalhar com o amontoado de colocações de um sedutor que usa um vale-tudo para sua abordagem: “Eu tenho savoir-faire/ Meu temperamento é light/ Minha casa é hi-tech/ Toda hora rola um insight/ Já fui fã do Jethro Tull/ Hoje me amarro no Slash/ Minha vida agora é cool /Meu passado é que foi trash”.

Coisa chique é coisa francesa. Desde a sociedade carioca satirizada por Assis Valente até os dias de hoje, há mares de gente que coloca crença nos feitiços da République como significado para refinamento. Foi assim quando o personagem criado por Mauricio Carrilho e Paulo Cesar Pinheiro ganhou na loteria, tratou logo de afrancesar tudo para ter momentos especiais com a amada: “Mas sivuplé, ô, messiê garcon / Leva o menu que eu não entendo lhufas/ Eu vou pedir esse Don Perignon/ Um escargot e um filet com trufas/ Depois daquela sobremesa que flamba/ A gente volta pro samba/ A gente encerra o glamour/ No fim da noite um bangalô / Penhoar e um abajur/ Pra gente fazer l’amour / L’amour toujour”.

Há também fato curioso no início dessa conversa sobre defesa dos traços brasileiros. A intolerância é restrita às culturas tidas como colonizadoras e acaçapantes e muito condescendente com as que foram julgadas como menos perigosas. O curioso é que enquanto alguns gritam não à simbologia da guitarra elétrica até hoje, saúdam os tambores africanos. E passando a régua, noves fora, o que mais somos em nossa MPB, guitarras ou tambores? Lenine nos responde e encerra a edição deste mês: “Jack Soul Brasileiro/ Do tempero, do batuque/ Do truque, do picadeiro/ E do pandeiro, e do repique/ Do pique do funk rock/ Do toque da platinela/ Do samba na passarela/ Dessa alma brasileira /Despencando da ladeira/ Na zueira da banguela /Alma brasileira”.


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