Cultura
03.09.2015
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03.09.2015
08.12.14
Pra que discutir com madame?
por Adriana Sydor
Primeira Escola de Samba da história: Deixa Falar. Foto: Divulgação
Coluna de Mag no Diário de Notícias não poupava ninguém. Reprodução/site jobim.org
O samba foi a inspiração de Heitor dos Prazeres, na música, nas telas e na vida. Reprodução/site heitordosprazeres.com.br
Nelson Sargento: Samba, “inocente, pé-no-chão, a fidalguia do salão”. Reprodução/site onda21.com.br

Hoje, Maria Magdala da Gama Oliveira é nome de praça no bairro Campo Grande no Rio de Janeiro. Não conheço, nunca andei por aquelas bandas e nem sei ao certo se ela está lá, paradinha, erguida em busto de bronze ou se apenas figura placa com seu nome. Me foi permitida apenas uma visitinha flutuante, que não me deixou me misturar à paisagem, nem sentir o vento balançar meus cabelos, nem ouvir os sons das crianças. O Google Earth apresentou-a como simpática, arborizada, com quadra dura para um joguinho e uns brinquedos comuns nesses sítios. Sem mais.
Maria Magdala da Gama Oliveira já teve mais prestígio naquela cidade e também mais popularidade. Mag era crítica de rádio, tinha coluna no importantíssimo jornal Diário de Notícias, que assinava de maneira independente, repleta de suas impressões, doesse a quem doesse. O caráter popular das canções a irritava, o cotidiano comum dos trabalhadores, vagabundos, negros, boêmios não combinava com tudo aquilo que ela queria para as expressões de seu país; tinha vontades europeias e permanências no pensamento do que considerava digno da elite carioca da primeira metade do século passado. Tenho a impressão que ela trocaria facilmente todos os tamborins, pandeiros e atabaques do mundo por um único cello.
Sem medo de causar má impressão, Mag não poupava ataques ao samba. Isso mesmo, ao samba! Não o queria como música brasileira e menos ainda como representação de nossa cultura. Sim, tinha o direito de não gostar. Sim, tinha a moral para publicar.Sim, tinha leitores que concordavam. Muita gente!
Mas, como ela, outros também tinham direito de reclamar, reclamar de sua reclamação. E foi isso que Haroldo Barbosa e Janet de Almeida (ah! quanta falta fazem essas inteligências!) fizeram. Criaram a imortal Pra que Discutir com Madame?, a madame era ela, a Mag, que insistia em uma classe de brasileiros distinta do povo, numa casta aristocrática que imitava os salões franceses.

“Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba,
Madame diz o que samba tem pecado
Que o samba é coitado e devia acabar,
Madame diz que o samba tem cachaça, mistura de raça, mistura de cor,
Madame diz que o samba democrata, é música barata sem nenhum valor,
Vamos acabar com o samba, madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que samba é vexame
Pra que discutir com madame?
No carnaval que vem também concorro
Meu bloco de morro vai cantar ópera
E na Avenida entre mil apertos
Vocês vão ver gente cantando concerto
Madame tem um parafuso a menos
Só fala veneno meu Deus que horror
O samba brasileiro democrata
Brasileiro na batata é que tem valor.”

Esta edição, no mês em que se comemora o Dia Nacional do Samba, é uma boa oportunidade de discutir com madame e lhe soprar os valores do nosso ritmo. E quem pode começar quente esse papo é Noel Rosa e Vadico, que explicaram em 1933, antes de Mag batucar, ops!, batucar não, datilografar suas linhas, na primeira parceria, a belíssima definição do ritmo, Feitio de Oração: “Batuque é um privilégio / Ninguém aprende samba no colégio / Sambar é chorar de alegria / É sorrir de nostalgia / Dentro da melodia”.  
Essa primeira citação poderia encerrar o assunto, mas muitos outros deram suas impressões sobre o que cabe num samba e qual é a sua essência. Vinicius de Moraes, o capitão do mato, o poeta e diplomata, o homem de mil liras e que passeou com tranquilidade nos caminhos que os estudiosos e críticos de plantão definem e separam como erudito e popular, nos contou assim: “O bom samba é uma forma de oração / Porque o samba é a tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança […] Ponha um pouco de amor numa cadência / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem um samba, não”.
“Ostra feliz não faz pérola”, disse Rubem Alves, talvez isso valha para o samba algumas vezes. Caetano Veloso concordou com o escritor e em Desde que o Samba é Samba trilhou um caminho que revela o sofrimento como ponto de partida para composição e a sua mutação em beleza, a pérola depois do pesar; o samba como agente transformador, o samba que transforma a dor: “O samba é o pai do prazer / O samba é o filho da dor / O grande poder transformador”.
Caetano usou ainda a mesma temática para assinar, com a rainha Dona Ivone Lara, Força da Imaginação: “Quando um poeta compõe mais um samba / Ele funda outra cidade / Lamentando a sua dor ele faz felicidade”.
Swami Jr, moderno, sensível pacas, violonista clássico com inclinações para a música popular, inteligente e sabedor das coisas da criação, compôs O Tempo de um Samba. Lá ele explica assim: “Do amor e da nossa existência / O samba é pura sagração do que não cabe na crença […] Entre nós é sempre o samba que revela o nosso olhar / Nosso quintal, nossa varanda / Nosso jeito de falar / Nossa voz é a voz do samba / Nosso jeito de querer […] É lá que a canção vai se vestir / Do que o coração pedir”.
E nesse trem, em que o samba é uma espécie de tradutor de essência, embarcou Wilson das Neves, para contar em parceria com Paulo César Pinheiro que é essa a sua vocação, seu recheio e cobertura, sua origem e linha de chegada. Em o Samba É Meu Dom, o baterista esbanja suas influências para concluir que “No samba que eu vivo, do samba que eu ganho meu pão / E é no samba que eu quero morrer de baquetas na mão / Pois quem é do samba meu nome não esquece mais não”.
E o mesmo Paulo César Pinheiro tem ainda em seu repertório de letrista outras composições que explicam e reverenciam sua fonte de olhar pro mundo, como em O Poder da Criação, parceria com outro bamba, João Nogueira: “Não, ninguém faz samba só porque prefere / Força nenhuma no mundo interfere / Sobre o poder da criação […] E o poeta se deixa levar por essa magia / E um verso vem vindo e vem vindo uma melodia / E o povo começa a cantar!” ou como em De onde Veio o Samba, essa em assinatura com Luciana Rabello: “Mas quem pergunta é porque nunca vai saber / Tem que sentir pra compreender / Samba tanto faz / De onde é que vem / Que tá no sangue, tá no gen”.
As respostas para Madame são muitas e elas dependem do estado de ânimo de cada trovador que se dispõe a essa questão. Mas a verdade está por aí, nos quintais, becos, rodas, bares, rádios e em qualquer outro lugar em que seja possível fruir a própria identidade.
Há um milhão de artigos acadêmicos que falam sobre a invenção do Brasil como terra do samba, sobre uma forçação de barra em torno de um tipo urbano e carioca como representante do continente nacional, sobre a mentira da sustentação do ritmo como nosso representante. Ora bolas! Talvez só haja um lugar capaz de estudar e preencher questões ligadas ao tema e esse lugar não é a universidade, mas a Escola de Samba. Por isso, para essa chatice sociológica de não nos deixar definir ou misturar ou complementar com tudo que o indiscutível traço cultural nos fez acreditar que somos, e também para Mag, que já deve ter se arrependido de seus escritos e a essas horas descola uma batucada ao lado de Heitor (o dos Prazeres), recado rápido: Deixa Falar, porque como explicou Nelson Sargento, o samba agoniza, mas não morre.

Deixa Falar era um bloco carnavalesco que teve o status alterado para “escola de samba”, porque lá se difundia, ensinava e aprendia os pormenores do ritmo. Por conta da boa fama e do sucesso, apesar de rápido, de 1928 a 1932, se transformou na primeira escola de samba da história. Depois de confusões por causa de grana, os componentes, entre eles Ismael Silva, se dispersaram; alguns encontraram novas agremiações, outros nunca mais se filiaram a cor alguma, caso do próprio Ismael.

2 de dezembro é data em que se comemora o Dia Nacional do Samba. A escolha é por conta de história que driblou a realidade para entrar nas deliciosas fantasias de nossa música: foi num 2 de dezembro que Ary Barroso teria ido à Bahia pela primeira vez e isso aconteceu depois da composição de Na Baixa do Sapateiro, logo ele havia sido encantado pela terra “ô Bahia, ai ai, Bahia que não me sai do pensamento ai ai…” mesmo antes de estar lá.
A história é bonita, poética, interessante, mas Ary foi à Bahia pela primeira vez em 1929, como pianista da orquestra de Napoleão Tavares e Na Baixa do Sapateiro é composição de 1938.


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