A impressão que tenho é que se trata de uma saída da fantasia para dar uma voltinha na realidade, coisa como quando estou dormindo e sonhando e sei, jeito (in)consciente, que estou dormindo e sonhando. É assim que funciona quando escuto uma música que cita, a qualquer tempo, um artista. Há um câmbio entre o que é música e o que é vida real, embora música seja vida real. Confuso? Vamos aos exemplos.
Caetano Veloso inspira, ainda que de forma imaginária, passeio pelas ruas e naturezas cinzentas de São Paulo: “Alguma coisa acontece no meu coração / Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João / É que quando eu cheguei por aquí eu nada entendi / Da dura poesia concreta de tuas esquinas / Da deselegância discreta de tuas meninas”. E esta voltinha nos conta um pouco dele, um pouco da cidade, um pouco de cada um dos provincianos deste país diante da capital; é uma viagem de percepção emocional e com paisagens subjetivas, até ao que se refere ao endereço marcado entre as duas ruas. De repente, tudo isso dá uma parada e surge uma figura real, exata, carne e osso: “Ainda não havia para mim, Rita Lee / A tua mais completa tradução”. A citação da ruiva rock’n’roll dá uma quebrada em tudo isso e nos coloca frente a frente com um fato. Caetano repetiu a fórmula em Saudosismo, letra em que, além de citar João Gilberto, percorre várias bossas: “Eu, você, João / Girando na vitrola sem parar / E o mundo dissonante que nós dois / Tentamos inventar”.
E já que Caetano abriu a lista de hoje, me seguro em seu nome para outros exemplos. Em 1984, Renato Teixeira tratou da presença de Veloso e compôs Caetano está na cidade, se o título parece um anúncio feito aqueles em carros que andavam pelos rincões do país a tratar da notícia de que o circo acabara de chegar, a letra é uma homenagem que ultrapassa o reclame, Tavito, o arranjador da música, explicou: “uma homenagem, uma declaração de amor a Caetano Veloso, em que o autor procurou transmitir o universo de Caetano, o seu espírito provocante e provocador, o seu jeito alegre, divertido, meio irônico, meio cínico, de criar debate, polêmica, alvoroço. A letra fala da ‘nave humana que é mais luminosa’ que acaba de chegar a uma cidade, atraindo o alvoroço de ‘mil tietes que vão beijar a sua boca’, que depois ‘irá cantar canções iluminadas’”. Adriana Calcanhotto também rendeu-se em despejar seus olhares ao compositor na antropofágica Vamos comer Caetano: “Vamos comer Caetano / Vamos devorá-lo / Degluti-lo, mastigá-lo / Vamos lamber a língua / Nós queremos bacalhau / A gente quer sardinha / O homem do pau-brasil / O homem da Paulinha”. E pra fechar, porém sem esgotar, as homenagens, Djavan, que transformou o tropicalista em verbo, em Sina: “Quiçá, um dia, a fúria desse front / Virá lapidar o sonho / Até gerar o som / Como querer Caetanear / O que há de bom”.
E já que o parágrafo anterior estacionou nos encantos baianos, seguiremos no mesmo estado. Gilberto Gil escreveu Buda Nagô, para aquele que é, talvez, a unanimidade nacional: “Dorival é ímpar / Dorival é par / Dorival é terra / Dorival é mar […] Dorival é um Buda nagô / Filho da casa real da inspiração / Como príncipe, principiou / A nova idade de ouro da canção”.
Antes de sairmos da Bahia, uma visitinha à obra de Gal Costa. Em 1969, Roberto e Erasmo Carlos compuseram a simpática Meu nome é Gal, que a própria intérprete, em tom autobiográfico, declara as preferências para encontrar um par ideal. Remetente exigente, ela logo conta de suas admirações, para não deixar dúvidas: “Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, / Macalé, Paulinho da Viola, Lanny, / Rogério Sganzerla, Jorge Ben, RogérioDuprat, / Waly, Dircinho, Nando, / E o pessoal da pesada”.
O Aldir Blanc uma vez disse que “até penico dá bom som se a criação é mais, se o músico for bom”. Eu acredito. O Guinga também acreditou e musicou. Agora, o importante dessa história é que eles aprenderam isso com Hermeto Pascoal. A letra, de onde a citação acima foi tirada, começa assim: “Hermeto foi na cozinha pra buscar o instrumental / Do facão à colherinha tudo é coisa musical / Trouxe concha e escumadeira, ralador, colher de pau / barril, terrina e peneira, tudo é coisa musical”. A homenagem corre solta, numa confusão digna d’O Bruxo, com objetos dos mais variados, sempre dentro da constatação de que “tudo é coisa musical”, para, no final, a confissão: “Nesse chá de panela é que eu senti a vocação / De que música é tudo que avoa e rasga o chão / Foi Hermeto Paschoal que, magistral, me deu o dom / de entender que do lixo ao avião / em tudo há tom”.
Sem economia de nomes ou mesquinharia de reverência, Paulo Cesar Pinheiro acertou na cabeça quando letrou O samba é meu dom, música de Wilson das Neves. O baterista, que se encontrou com o canto há alguns anos, revela na voz rouca, no samba no pé e no olhar de uma vida inteira onde aprendeu tudo: “Aprendi cantar samba com quem dele fez profissão: / Mário Reis, Vassourinha, Ataulfo, Ismael, Jamelão / Com Roberto Silva, Sinhô, Donga, Ciro e João / O samba é meu dom / Aprendi muito samba / Com quem sempre fez samba bom / Silas, Zico, Aniceto, Anescar, Cachinê, Jaguarão / Zé com Fome, Herivelto, Marçal, Mirabô, Henricão / O samba é meu dom”.
Na mesma balada está a dupla Sérgio Cabral e Hildo Hora em Meninos da Mangueira, bela exposição de grandes nomes, todos ligados à Verde Rosa: “Carlos Cachaça, o menestrel / Mestre Cartola, o bacharel / Seu Delegado, um dançarino, / Faz coisas que aprendeu com Marcelino / E a velha-guarda / Se une aos meninos lá na passarela / Abram alas que vem ela / A Mangueira toda bela […] Ô pandeirinho, cadê Xangô / Ô preto rico, chama o Sinhô / E dona Neuma, maravilhosa / É a primeira mulher da Verde-Rosa”.
Entre os Beatles na vitrola, um disco de B.B. King que toca sem parar, um recado a John, um chamamento ao síndico da MPB, uma tirada de chapéu para Franciscos de todas as épocas e uma lembrança a Elizeth há muita gente que se esbalda nessa mistura entre o tema e as referências. Às vezes uma metalinguagem, às vezes uma declaração de amor, às vezes só o reconhecimento... Pensei em terminar a edição com o Samba da Bênção, com as palavras de Vinicius, o nosso capitão do mato; depois mudei de ideia porque achei óbvio demais para os leitores desta coluna, por fim, me rendi a uma das mais lindas homenagens que já ouvi. Assim me despeço, sem inventar moda, porque clássico é clássico: a bênção, Vinicius, Saravá!
“A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Tu que choraste na flauta
Todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a bênção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes
Sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos
Não és um só, és tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá! A bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus.”