Cultura
03.09.2015
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03.09.2015
03.09.2015
29.05.15
O nosso Vampiro, aos 90
por Vicente Ferreira
Tipografia: Carlos Garcia Fernandes

Dalton Trevisan completa 90 anos neste 14 de junho. Para alegria de seus leitores, vai lépido, fagueiro e produtivo, numa de suas melhores fases. Isso deve desagradar a corja de inimigos do Vampiro. A começar pela hiena papuda necrófila, a traveca de araponga louca da meia-noite. Além do pequeno canalha, há outros tantos como a barata leprosa com caspa na sobrancelha. Só o Dalton para rebatizá-los com o apodo que merecem.

Ora, pois, esta ínfima minoria é de gente que, de uma forma ou outra, conviveu perto de Dalton Trevisan nesta soturna província de Curitiba e por ele desenvolveu um sentimento comum aos medíocres. Inveja, muita inveja. E com ela os ressentimentos sociais, as mágoas do escritor que não escreve e se escreve se expõe ao ridículo.

Tudo bem, como costumam repetir as almas parvas, esta introdução talvez ajude a explicar o comportamento arredio de Dalton Trevisan, que não tolera jornalistas, fotógrafos, professores de letras, linguistas, pregadores, literatos e todo o tipo de chato que pode lhe atazanar a paciência. Chegou a escrever uma oração para pedir ao Senhor que os livre dessa fauna. "Deus, livrai-me dos chatos".

Dalton não tem vocação para pop star. Prefere que lhe observem a obra, não ele. A obra fala por ele, que só deu uma entrevista na vida, ao Mussa José Assis, que a publicou no caderno de cultura do jornal estado de São Paulo. Isso há mais de 40 anos. Pois está tudo lá, para Dalton Trevisan. E basta. Falar de sua vida pessoal, nem a pau. Protege a sua privacidade com unhas, dentes, cusparadas e pedras, se for necessário.

Vamos à obra. Escrevi algo sobre ela há algum tempo, procurando me distanciar ao máximo da admiração em favor do exame frio e técnico de seus contos. Eu disse que Dalton Trevisan tem uma das obras mais originais da literatura em língua portuguesa. Originalidade feita, paradoxalmente, da recorrência obsessiva de temas, de personagens, de situações e de uma habilidade para ampliar efeitos linguísticos a partir da redução do universo das palavras.

Contraditório? O resultado é a sua estética da contenção. A busca da concisão. Nem uma palavra a mais. A ironia cortante e o sarcasmo habitual de suas histórias estão em todos os contos — alguns de apenas uma frase — que transmitem todas as aflições e alegrias de homens e mulheres, com erotismo intenso e diálogos incomuns.

Dalton retrata os desastres do amor, as cenas da vida cotidiana, os infernos particulares, a guerra dos sexos. E o faz com personagens exemplarmente banais e através de uma linguagem limpa, sem adereços, nenhum traço barroco.

Há quem não compreenda a repetição como método. O próprio Dalton, em um de seus momentos de humor, escreveu “Quem tem medo de Vampiro?”, para os ignaros. Pelo avesso, o conto é um retrato do autor e de sua literatura. A sátira incorpora as ressalvas mais comuns feitas ao seu estilo e transforma em matéria ficcional a incompreensão de críticos e literatos. Saboreiem:

 “Há que de anos escreve ele o mesmo conto? Com pequenas variações, sempre o único João e a sua bendita Maria. Peru bêbado que, no círculo de giz, repete sem arte nem graça os passinhos iguais. Falta-lhe imaginação até para mudar o nome dos personagens. Aqui o eterno João: ‘Conhece que está morta’. Ali a famosa Maria: ‘Você me paga, bandido.’”

No caso de Dalton, seus personagens não retornam porque são excepcionais. Ao contrário, são sempre os mesmos porque são simples, sem traços especiais. Pelo avesso, no mesmo conto, Dalton explicita seu projeto linguístico e temático:

Debochado, com aquele sorriso de ironia no canto da boca, ele diz: “Quem leu um conto já viu todos. Se leu o primeiro pode antecipar o último - bem antes que o autor. (...) Mais de oitenta palavras não tem o seu pobre vocabulário. O ritmo da frase, tão monótona quanto o único tema, não é binário nem ternário, simplesmente primário. Reduzida ao sujeito sem objeto, carece até de predicado - todos os predicados. Presume de erótico e repete situações da mais grosseira pornografia. No eterno sofá vermelho (de sangue?) a última virgem louca aos loucos beijos com o maior tarado de Curitiba. (...)”

Basta inverter o sentido das afirmações para avaliar a superioridade dessa concepção de literatura, compreendendo na repetição metódica a diferença almejada por Trevisan. Escassez não é sinônimo de precariedade. Se literatura é a arte combinatória do propriamente humano, 80 palavras permitem a reinvenção infinita de um núcleo restrito de histórias. Isso para não mencionar os jogos literários que Trevisan inclui com sutileza no “único” conto que reescreve sem parar.

 “Cedo a casadinha vai às compras. (...) Ó bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.”

Interessante é que essa obra, construída ao longo da vida, saborosa e intensa, muitas vezes é colocada em segundo plano para que a figura do autor, um Dalton Trevisan arredio, avesso aos assédios, horror da imagem de pop star, se torne mais conhecida. São os críticos que não são críticos, produtores de resenhas, copistas, escritores mal resolvidos e repórteres principiantes. Para eles, a oração "Deus, livrai-me dos chatos”.

Deus, livrai-me dos chatos

Livra-me dos chatos e Te agradecerei, oh Senhor. Rouba-me o emprego, planta-me em cada dedo a Tua unha encravada, mata-me de morte lenta e dolorosa, mas livra-me dos chatos. Há chatos demais, Senhor, nesta Tua cidade. Cobre a minha cabeça de piolhos, arranca os meus olhos das órbitas, Senhor, mas livra-me dos chatos.

Eles podem mais que Teu rum da Jamaica, que Teu éter sulfúrico. De Curitiba fugiram os Teus anjos, Senhor e, se fugiram, eles que eram anjos, o que será de mim?

Tuas pestes, Senhor, poupam aos chatos, são eles intocáveis ao Teu dedo? Claudionor eu Te perdôo, Senhor, a Valquiria que embebeu as vestes em álcool e ateou fogo eu Te perdôo, Senhor, as duas senhoras de nomes Lucinda e Perciliana que se engalfinharam durante a missa na Tua catedral, eu Te perdôo porque Te entendo, Senhor.

Não Te entendo, oh Senhor, por que poupas a eles, que são chatos. Por eles se perde o mel que a abelha ainda não cozinhou. Eles estragam o gosto do café ainda na xícara e azedam o leite no seio da mulher grávida.

 Endureceste o coração contra mim: sou eu Faraó e são os chatos Teu povo? Não me poupes, Senhor, entre os malditos é o meu lugar. Abate-me com Tua mão pesada, eu Te abençoarei. Sacode-me no pó como fizeste com Job, ah, mas os amigos que mandaste consolar a Job não eram eles três chatos, Senhor?”

Dalton Trevisan,

Senhor, em Lamentações de Curitiba, 1961

 

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Passeio

(por Adriana Sydor)

Por nossos motivos de nascença, pelos nossos tons de cinza, por um céu azul que não é azul, nesta terra não é aconselhável caminhar à luz do sol. Melhor à noitinha, longe das vistas. Nossa genética é marcada nas espirais com as navalhas dos dentes do vampiro.

Mesmo assim, desafiei e saí. 

Nem sabia direito pra onde. Às vezes gosto assim. Já na esquina o gari palpitava com o cuidador de carro sobre o jogo, parece que um tal qualquer é a salvação da rodada. Três passes, um gol. Aposta.

Na Saldanha Marinho um velho, muito velho, deixa que o tempo cumpra o seu papel enquanto observa, abatido na cadeira, o sol que espia atrás dos prédios. Uma mão a tremelicar apoiada na bengala, outra largada, morta, em cima do joelho. Falei boa tarde, mal humorado, me fez gesto com o queixo. Sem sorriso.

A Praça Espanha tem enfeites novos e os mesmos vícios. Um homem sentado no banquinho. Roupa de quem procura emprego e cansaço de quem não encontra. Ou é um vendedor de plano de saúde a matar as horas e mentir labuta. Ou, ainda, um crente na piedade de Deus a esperar o culto. Calça, camisa, gravata, pastinha, tudo tão coçado... Os sapatos têm marcas de rosto de lavrador, valetinhas que só não são fundas porque a terra as preenche. Cabeça baixa, olhar no chão. Em volta, umas palmeiras fora de lugar. E o chafariz que chora sua desgraça.

Até eu virei o pescoço para não perder ângulo da moça. Nem era tipo bonita, mas estava toda montada numas botas muito altas e rebolava. Um lado e outro; direita, esquerda; leste, oeste. Marcha bem marcada. Quando chegou à esquina, fiquei reparando, puxou o telefone da bolsa e, dedo esticado, tratou da comunicação. Devia ser coisa boa, porque tinha sorriso. Uma moto buzinou, nem ouviu. Depois olhou pro sinal e atravessou a rua. Tipinho muito vulgar, todo mundo via. Menos uma, que, método científico, olhava para o namorado para saber se ele era também observador. Acho que brigaram depois.

Bem no centro ainda há o cine pornô. Fiquei no café da esquina, fatia de bolo e cappuccino, a apreciar o movimento. E se algum conhecido entrasse ali? Pensamento insalubre, que que eu tenho com isso? Mesmo assim, não tirei as vistas da portinha. Jornal na mesa, disfarce. Não conto sobre a fermentação, porque quem quiser saber, há de ter os próprios ânimos para descobrir. 

Depois ainda dei mais uma voltinha. Providências domésticas, livro que o Dé me pediu, tomada para o quarto da Lívia, potinho para guardar queijo.

O taxista me contou que o inverno vai ser pesado e de como sua mãe ainda deixa o café em cima do fogão à lenha: adoçado em garrafa térmica, toalhinha de crochê e as quatro canecas. O aparelho não funciona mais, o pai não quer que tire dali.

Em casa, lembrei que não havia comprado pão. Nada no caminho até a padaria, só uma mulher que gosta de conversar com o cachorro que a olha na interrogação dos bichos, ela acha que é resposta e fala com a solidão. 

Moro na cidade de Dalton Trevisan e tudo é recheado por ele, como se não fosse nosso repórter, mas nosso inventor. O Deus que nos coube, para quem acendemos velas e louvamos nossas misérias. É ele nosso sorriso de ouro. E de chumbo.

 

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Minhas tardes com Dalton Trevisan

(por Ilana Lerner)

Se você é curitibano de verdade tem uma história pessoal que envolva o Dalton Trevisan. Se não tem, me desculpe meu amigo, sua biografia está incompleta.

Minha primeira lembrança do Dalton são as lombadas dos seus livros na biblioteca da casa dos meus pais. Na minha época de criança, literatura infantil se resumia ao Menino do dedo verde, Meu pé de laranja lima, as obras de Monteiro Lobato, Poliana, a coleção Vagalume e o Pequeno Príncipe, o resto era direto na literatura pra valer, de adultos. Era uma leitora meio precoce devo admitir, mas os livros do Dalton ficavam lá no alto da estante, providencialmente longe das minhas pequenas mãos.

Mas o Dalton era mais que autor, era personagem. Sue nome e sua incrível mítica de fantasma/vampiro começavam a chegar aos meus ouvidos. Quem era esse nosso grande escritor que era reconhecido no Brasil todo, que vivia quase recluso, que não se deixava fotografar, que não dava entrevistas? Precisava saber.

Adolescente, mais alta, voltei a nossa biblioteca e fui conhecer as capas dos livros do instigante escritor. Lá estavam O Vampiro de Curitiba.  Virgem louca, loucos beijos, A Polaquinha, Novela nada exemplares, Cemitério dos elefantes, Morte na Praça, Mistérios de Curitiba, O Pássaro de cinco asas, entre outros. As capas eram incríveis, diferentes de tudo que eu já tinha lido, com certeza. O que me atraia era que o Dalton era curitibano, a possibilidade de ler sobre a minha cidade num livro era uma coisa inédita, eu poderia reconhecer os lugares, quem sabe até conheceria algum dos personagens, estava emocionada. E lá fui eu entrar nas brumas da cidade nos olhos do Dalton.

Nada me preparou para o que li! Foi obviamente um choque, vocês podem imaginar. Num primeiro momento, o estranhamento foi enorme, não conseguia definir o que estava lendo, alias o que era isso que eu estava lendo? Lembro da sensação: eu no estúdio da minha casa, lendo o livro e tomada pela sensação de estar cometendo um pecado quase tão grande quanto os beijos roubados das personagens das histórias. Embora já tivesse lá meus 15 anos, as conversas sobre o assunto sobre o qual Dalton escancarava nas suas páginas não era conversa fácil na mesa de jantar. Época de tabus e segredos, mesmo para uma família bastante liberal como a nossa. Eu lia e me sentia uma das personagens do livro, acho que chegava a corar! Assim fui apresentada ao Dalton, assim me tornei cúmplice das prostitutas, cafetões, virgens e pilantras que ia conhecendo naquelas tardes dos anos 80. 

Quando estava na faculdade de jornalismo, dez anos depois, meu caminho sempre passava pela casa do Dalton. Passei anos esperando a chance de ver nosso vampiro. Aquelas janelas sempre fechadas...

Vinte anos depois, no carro com meu filho que na época devia ter uns sete anos, lá estava ele, andando pela rua, sacolinha de mercado na mão. Quase bati o carro. Ben, olha ali o Vampiro de Curitiba! Vampiro mãe, esse velhinho é um vampiro? Tem vampiro em Curitiba? Fiquei emocionada, inundada com aquela sensação lá do estúdio. Acho que cheguei a corar de novo!


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