Cultura
03.09.2015
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14.09.12
Só na sapatilha
por Tisa Kastrup

Os gestos, a postura e o olhar repletos de graça não deixam nenhuma dúvida de que estamos diante de uma prima ballerina. Ana Botafogo recebeu a revista Ideias em seu habitat: uma das enormes salas espelhadas da escola de ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, cujo Corpo de Baile integra há 30 anos. A trajetória profissional desta bailarina começou em Curitiba, pelas mãos de uma fada madrinha local, e revela atos dignos de uma peça de ballet.

O Quebra-Nozes, 2003
A Viúva Alegre, 2008
“Para mim, Ana Botafogo não é apenas uma grande bailarina, mas uma amiga fiel e um ser humano de qualidades excepcionais”, diz Dora de Paula Soares
“Coppelia”, 1988, com Paulo Rodrigues
Transmitindo seus conhecimentos e ensaiando jovens bailarinos no Studio D1: “É mais desafiante do que coreografar”
Transmitindo seus conhecimentos e ensaiando jovens bailarinos no Studio D1: “É mais desafiante do que coreografar”
Encerramento do espetáculo “A Viúva Alegre”, com Maria Eugênia de Paula Soares, Hugo Delavalle, Dora de Paula Soares e Marcelo Misailidis
Ao lado de seu Onegin, Tiago Soares, primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres: “Dançar é um desafio diário”

Os gestos, a postura e o olhar repletos de graça não deixam nenhuma dúvida de que estamos diante de uma prima ballerina. Ana Botafogo recebeu a revista Ideias em seu habitat: uma das enormes salas espelhadas da escola de ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, cujo Corpo de Baile integra há 30 anos. A trajetória profissional desta bailarina começou em Curitiba, pelas mãos de uma fada madrinha local, e revela atos dignos de uma peça de ballet.

A ex-bailarina e à época professora do Ballet do Teatro Guaíra, Dora de Paula Soares, sacudiu sua varinha e sussurrou nos ouvidos do coreógrafo Hugo Delavalle, então diretor artístico do BTG, que uma jovem bailarina de excepcional talento estava voltando ao Brasil depois de uma temporada de estudos na França e que seria oportuno chamá-la para uma audição. Dançando, Ana encantou Delavalle e conquistou sua primeira oportunidade como bailarina profissional no Ballet do Teatro Guaíra, onde já havia estagiado por quatro meses em 1974 – ano em que despertou a atenção e o apurado faro técnico de Dora.

Ana mudou-se para Curitiba no final de 1977 e conta que precisou da ajuda de outro padrinho para resolver uma questão deveras insólita. “Com recursos modestos, encontrei uma quitinete perto do Guairão. Mas, além do fiador local, o proprietário exigiu o aval de um homem sério para abonar meus bons modos e garantir que eu era ‘moça de família’, pois ele não queria mulheres solteiras ou de comportamento duvidoso ocupando seu imóvel, ainda mais uma bailarina carioca de 20 anos!”, diverte-se Ana. Ambas as tarefas foram resolvidas pelo empresário carioca radicado em Curitiba, Fernando Kastrup, amigo de infância de seus pais.

Ao mesmo tempo em que Ana amarrava suas sapatilhas no Corpo de Baile do Ballet do Teatro Guaíra, Dora abria as portas de sua escola de danças, o Studio D1, onde logo depois Ana foi dar aulas para complementar seu pequeno orçamento e prestigiar Dora. Sem saber quantos alunos teria, Dora estava a postos para ensinar a quem aparecesse. No primeiro mês apareceram trezentos alunos. E ao fim do primeiro ano, mil bailarinas e bailarinos já dançavam pelas salas desta escola, cujo lema sempre foi “o ballet é para todos”. Até hoje Ana convive com Dora e guarda imenso carinho por Curitiba. “Eu vi o Studio D1 nascer, sua primeira aluna matricular-se, comemorei com a Dora o décimo aluno, dancei em espetáculos da escola e sou muito grata ao Teatro Guaíra pelo meu primeiro emprego como profissional.” Informada das mudanças – para menor – do curso de ballet do Teatro Guaíra, Ana reprova: “Um bailarino precisa de sete a oito anos de estudos e trabalho para tornar-se um profissional completo, é irreal tentar formar seu corpo e sua cultura na metade do tempo”, lamenta.

Atleta olímpica

Após ter dançado praticamente todos os grandes papéis do repertório clássico mundial com pas des deux ao lado de grandes bailarinos em palcos por todo o mundo, Ana está apresentando seu último papel de repertório. No palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Ana é Tatiana, mocinha de Onegin, estória de um amor impossível e não correspondido. Baseado em um poema de Aleksander Pushkin e com música de Tchaikowsky, o papel de Tatiana foi originalmente criado para Márcia Haydée, bailarina brasileira que brilhou por anos à frente do Ballet de Stuttgart. O Onegin de Ana será Tiago Soares, primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres.

“Dançar é um desafio diário. Fisicamente, meu desempenho hoje é igual ao de 35 anos atrás. Viver a Tatiana requer executar pas de deux muito intensos, entrar na estória dos personagens, além de buscar dicas da intérprete original para as exigências do papel”, revela Ana. O corpo pequeno e leve desta graciosa bailarina guarda uma estrutura de atleta. Diariamente ela se alimenta muito bem, dorme cedo e repete intermináveis séries de exercícios para aquecer, alongar e fortalecer sua musculatura antes de dançar. Quem pensa que uma bailarina suporta oito horas de trabalho por dia, com duas folhas de alface, uma fatia de queijo branco e um gomo de tangerina no estômago, precisa imaginar uma jogadora de vôlei de praia com intenção de conquistar uma medalha olímpica fazendo o mesmo. Não dá. Lesões e dores são companheiras inseparáveis das bailarinas tanto quanto dos atletas. “Tenho sorte, só rompi um ligamento em um tombo bobo andando de tênis na rua e jamais precisei ser operada, mas conheço alguns bailarinos com seis cirurgias em seus joelhos e tornozelos”, conta.

Viuvez em dobro

Livre das dores físicas, Ana guarda marcas emocionais profundas em seu coração. Casou-se tarde por conta da profissão, com o também bailarino britânico Graham Bart, colega no Theatro Municipal. Exímio nadador, Graham foi com um amigo ver a ressaca do mar na orla da praia do Leme, no Rio de Janeiro. Surpreendidos por uma onda mais forte, ambos foram tragados pelas águas. Apesar de não saber nadar, o amigo de Graham conseguiu voltar à praia. Depois de angustiantes 19 dias de buscas, quando as vidas de Ana e seus familiares ficaram suspensas como pelas fitas de uma sapatilha, o mar devolveu o corpo de Graham na costa de uma praia em Niterói, do outro lado da Baía da Guanabara, a dezenas de quilômetros de distância do local do acidente. Para levar sua vida adiante e superar tão dura perda, Ana vestiu suas sapatilhas cor de rosa e seguiu fazendo o que sabia fazer: dançar. “As peças musicais são muito emocionantes, e me lembrava do Graham. Mas meus pés me levavam com mais força do que a dor em meu coração”.

Anos mais tarde, foi também sob a cúpula dourada do Theatro Municipal que Ana conheceu seu segundo marido. O advogado Fabiano Marcozzi era subsecretário de Cultura do Rio de Janeiro e trabalhava na criação da Fundação Theatro Municipal. Um esbarrão na sala da administração deu conta de unir as sapatilhas dela com os contratos dele. Experiente administrador e marido carinhoso, Fabiano poupava Ana de quaisquer ocupações burocráticas, proporcionando a ela tempo total ao ballet. Contabilidade doméstica era um papel dele. Fabiano fumava muito, sofreu um AVC em casa e foi levado para uma UTI. O porteiro não viu Ana chegar. Só quando seus pais chegaram à noite para o jantar é que ela foi avisada. “Apesar de ser abençoada com a chance de me preparar para esta perda, pois tivemos 11 dias até a partida de Fabiano, perguntava-me por que isso estava acontecendo de novo comigo“, revela Ana, que se sentiu totalmente perdida em meio a contas de condomínio, débitos automáticos e programação financeira com a falta do marido. Afinal, sua profissão era ser bailarina. E o que sabia fazer de melhor era dançar. Então, para pagar as contas já que estava novamente viúva, vestiu as sapatilhas e o sorriso de bailarina, ergueu o queixo e seguiu dançando.

Até dançar chorinho e samba com sapatilha Ana mostrou que era possível. Por três vezes desfilou na ponta dos pés na Marquês de Sapucaí. Na primeira, em 1991, foi surpreendida pelo convite da União da Ilha, que iria apresentar o enredo “Bares do Rio”. Seu papel era vestir-se de bailarina e enfeitar o topo do carro alegórico “Assyrio”, nome do tradicional bar localizado no subsolo do palco do Theatro Municipal. E quem disse que Ana resistiu ao som da bateria? Sem ensaio ou acerto prévio com os carnavalescos, subiu na ponta e tratou de sambar, para delírio dos espectadores, em especial os privilegiados dos camarotes que ficavam na mesma altura que ela. “Não podia descer da ponta que me pediam para subir de volta”, ri. Sua segunda aparição na Sapucaí foi pela Mocidade Independente de Padre Miguel, como a bailarina sambista de uma caixinha de música. O derradeiro desfile de Ana sambando na ponta dos pés foi há dois anos como Odete, no alto do carro “Lago dos Cisnes”, acompanhada de seis dezenas de bailarinas, todas de tutu branco e na pontinha dos pés, conforme ensinado pela pioneira Ana.

Voos solo e novos palcos

Paralelamente à exclusividade que o posto de prima ballerina do Theatro Municipal do Rio requer, Ana investia tempo e recursos de patrocinadores para viajar pelo Brasil levando espetáculos de dança criados para ela. Acompanhada de mais um ou dois bailarinos e de música ao vivo, Ana tornou-se nacionalmente conhecida com suas turnês solo, como Três Momentos de Amor, Ana Botafogo In Concert e Isto É Brasil.

Muitas coreografias foram criadas por Carlinhos de Jesus, expert em samba, o que ajudou a aproximar o ballet do grande público – algo como os tenores e o maestro André Rieu fazem com músicas populares para atrair plateia para espetáculos de ópera e música erudita. O chorinho na ponta dos pés foi apresentado pela primeira vez na Pedreira Paulo Leminski. O espetáculo em duo com o pianista Artur Moreira Lima era parte dos festejos dos 300 anos da cidade, à época administrada pelo prefeito Rafael Greca, de quem se tornou fã. “Rafael e Margarita são das pessoas mais cultas, bem educadas e de mente mais aberta que já conheci”, confessa, enquanto guarda a edição de Ideias com a matéria Big Greca estampada na capa para ler depois.

Este ano, Ana homenageou Curitiba e compartilhou sua alegria com a cidade, começando por aqui a comemoração de seus 35 anos de carreira com o espetáculo solo “Marguerite e Armand”, protagonistas da estória de amor sem final feliz do clássico “A Dama das Camélias”.

Interpretando e vivendo tantos amores frustrados, Ana foi convidada para uma arte completamente nova e desconhecida: uma novela. O autor Manoel Carlos, encantado após assisti-la dançar, disse que um dia gostaria de tê-la numa novela sua. Com a elegância usual, mas surpreendida pelo palco proposto, Ana perguntou: “Quem disse que bailarina fala? Eu não sei falar, eu só sei dançar”. Um ano e meio depois, lá estava Ana, corajosamente enfrentando as câmeras da Globo no papel de uma falante professora de ballet, filha de Tarcísio Meira e Glória Menezes, em “Viver a Vida”.

Para quem a própria vida é uma verdadeira novela, daria um enredo de escola de samba e tem assunto para um livro inteiro, Ana está organizando com a ajuda dos pais a sua biografia. Selecionar fotografias com boa qualidade para impressão não foi fácil. Mas encontrar patrocinadores para viabilizar a edição desta obra, quase pronta, é um capítulo que ainda está sendo escrito e para o qual ela aguarda participações especiais. “Como eu estou dançando enquanto meu pai vai buscar patrocínio, sinceramente não sei de quanto ainda precisamos”, constata com simplicidade.

O final act está longe. “Ainda tenho muito trabalho pela frente. Gosto muito de ensinar, transmitir meu conhecimento e ensaiar os jovens bailarinos. É mais desafiante do que coreografar”, deixando no ar o momento em que vai pendurar as sapatilhas.

“Quando olho para trás e para tudo o que passei, vejo que só cheguei até aqui porque vim dançando”, despede-se Ana Botafogo, que sai sorrindo para dançar mais um pouco.


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