Cultura
03.09.2015
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18.04.13
Meu mundo caiu
por Adriana Sydor

Atire a primeira pedra aquele que nunca sofreu por amor! E atire duas se esse sofrimento não teve trilha sonora...

O simpático Lupicínio Rodrigues se transformou no “Pai da dor de cotovelo”
Antônio Maria: na vida muita animação, na obra um mestre em cantar dramas
Maysa até se aventurou por outros estilos, mas suas mais marcantes interpretações foram as que envolviam dramas, dores e debates da alma
“Atrás da Porta”, de Francis Hime e Chico Buarque, cantada por Elis Regina, se tornou o hino do abandono

Amores fracassados, mulheres infiéis, histórias de abandono... não há temática mais constante e envolvente em nossa música do que uma boa dor de cotovelo. Desde sempre, corações partidos dão pano pra manga, nota pra música e letra pra canção.

 Quem embala a dor com música sofre mais, mas sofre melhor. Ao se encolher num canto a encharcar lenços e murmurar versos ou dar dós de peito em frente ao espelho, pelo menos se consegue alguma solidariedade do autor que também esteve em situação parecida.

 Quase todos os compositores revelam os próprios dramas na música ou os que têm a sorte de um amor tranquilo importam histórias alheias para conversar com corações desesperados... De uma forma ou de outra, todo mundo canta esse eterno tema – revelação de nossa incapacidade na arte do amor.

 O mestre insuperável, nome que se tornou praticamente sinônimo do estilo, foi Lupicínio Rodrigues. Até dizem por aí que foi ele quem inventou a expressão dor de cotovelo. Alegre, extrovertido, cheio de conversa e de malandragem, o gaúcho não economizou lágrimas para revelar cada uma de suas experiências.

 

“Quando a gente perde a ilusão / Deve sepultar o coração / Como eu sepultei…” (Nunca, samba-canção de 1952)

 

“Mas enquanto houver força em meu peito / Eu não quero mais nada / Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar / Você há de rolar como as pedras / Que rolam na Estrada” (Vingança, música de 1951)

 

E o Antônio Maria? Dono de humor necessário em todas as reuniões e rodas boêmias, capaz de animar com suas narrativas o mais desgraçado dos homens, também foi um mestre em cantar a dor:

 

“Vim pela noite tão longa / De fracasso em fracasso / E hoje descrente de tudo / Me resta o cansaço / Cansaço da vida, cansaço de mim” (Ninguém me Ama, escrita em 1952 em parceria com Fernando Lobo)

 

“De que serve viver tantos anos sem amor / Se viver é juntar desenganos de amor / Se eu morresse amanhã de manhã / Não faria falta a ninguém / Eu seria um enterro qualquer / Sem saudade, sem luto também” (Se Eu Morresse Amanhã de Manhã, de 1953)

 

O casal Dalva de Oliveira e Herivelto Martins fez dos dramas conjugais uma ponte de comunicação com o público. As músicas viraram rede de recados para mensagens nada cifradas, a deixar que todo mundo dividisse as dores, tomasse partido ou simplesmente utilizasse as letras para desafogar as próprias frustrações.

 

Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem / E quebraste um telhado, perdeste um abrigo / Feriste um amigo / Conseguiste magoar quem das mágoas te livrou” (Atiraste uma Pedra, Herivelto Martins e Davi Nasser, sucesso de 1958).

 

Se coube a Lupicínio o título de pai da dor de cotovelo, representante feminina à altura foi Maysa. Ainda menina, interna do Sacré Cour de Marie, compôs um samba-canção intitulado “Adeus”, era o primeiro passo de vida e obra permeadas por estilhaços da trama que marcou sua trajetória. Até se aventurou pela leveza da Bossa Nova, mas foi protagonista mesmo de todas as fossas do mundo.

 

“Meu mundo caiu / E me fez ficar assim / Você conseguiu e agora / Diz que tem pena de mim” (Meu Mundo Caiu, faixa do álbum de estreia da cantora e compositora em 1958)

 

Para o folhetim da MPB também vale inventar dor, se fingir de outro, trocar de pele. Essa é a habilidade que alguns acham que Chico Buarque tem de sobra. Foi dado a ele o honoris causa de homem-que-sabe-a-dor-de-uma-mulher. A ocupar voz feminina, ele derramou tempestade de lágrimas.

 

“Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus / Juro que não acreditei/ Eu te estranhei, me debrucei sobre teu corpo /E duvidei , e me arrastei, e te arranhei” (Atrás da Porta, composta em 1972, com Francis Hime, num animado encontro de amigos; ganhou a interpretação dramática e definitiva de Elis Regina)

 

“Quando você me deixou, meu bem / Me disse pra ser feliz e passar bem / Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci / Mas depois, como era de costume, obedeci” (Olhos nos Olhos, Maria Bethânia a cantou em 1976)

 

E até quem é mestre da alegria, quem desfila pela música a alegrar e fazer pular grandes plateias, também tem momentos de desilusão.

 

“Pois você passa não me olha / Mas eu olho pra você / Você não me diz nada / Mas eu digo pra você / Você por mim não chora / Mas eu choro por você” (Por Causa de Você, Menina, Jorge Ben Jor, em 1963)

Quantos hinos de desespero, de dor de cotovelo, de desgraça absoluta há na história da canção popular? Impossível responder. Esta lista poderia seguir, seguir e seguir até preencher todas as folhas da revista e, ainda assim, não teria final. Já que a arte vai buscar na vida as inspirações para desenvolver seus assuntos, isso é sinal de que todos consumimos muito tempo a chorar as pitangas pelas incursões amorosas malsucedidas.

Mas há também o tempo de recomeçar e por isso são muitas as trilhas quando esse momento chega. Mas essa é história pra depois, pra quando tudo se ajeitou e aquela pontinha de ressentimento está prestes a desaparecer. É, basicamente, quando se chega ao fundo do poço para pegar impulso, quando consegue do peito tirar um espinho, é que a velha esperança já não pode morrer… E a história recomeça…

 

 

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Em 1952 Ary Barroso, a mostrar que também sabia de fossa, escreveu “Risque”. Aurora Miranda se encarregou de lançá-la e transformá-la em um grande sucesso que inundou a vida daqueles que vivem o ressentimento da hora do adeus.

“Risque, meu nome do seu caderno / Pois não suporto o inferno / Do nosso amor fracassado / Deixe que eu siga novos caminhos / Em busca de outros carinhos / Matemos nosso passado / Mas, se um dia, talvez, a saudade apertar / Não se perturbe, afogue a saudade / Nos copos de um bar / Creia, toda a quimera se escoa / Como a brancura da espuma / Que se desmancha na areia”

 

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“Tire seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor.”

Há maior ressentimento na história da música popular? Provavelmente, sim. Mas os dois versos resumem bem um tipo muito específico de dor de cotovelo. O curioso da composição é que a letra encaminha para obra de Nelson Cavaquinho, mas esse texto é do parceiro Guilherme de Brito, como em todas as outras parcerias da dupla, Nelson trata da música e Guilherme da letra. “A Flor e O Espinho” foi lançada em 1957 por Raul Moreno. Ficou escondidinha por um longo período até ganhar a voz de Elizeth Cardoso, em 1965, e aí sim, nacionalmente conhecida, cantada e repetida. Além de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, a música tem assinatura de Alcides Caminha.

 

 

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E o disco do Pixinguinha fica com quem? Com o final do amor chega também a necessidade das providências práticas, do cada um pro seu lado, de separar as suas e as minhas coisas. E a música também canta as mesquinharias da divisão, as dores da devolução ou o lamento pelos objetos que construíram história.

“Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim? / O resto é seu / Trocando em miúdos, pode guardar / As sobras de tudo que chamam lar / As sombras de tudo que fomos nós” (Francis Hime e Chico Buarque, Trocando em Miúdos)

“Já que você não aparece /
venho por meio desta
devolver teu faroeste /
o teu papel de seda,
a tua meia bege /
tome também teu book /
leve teu ultraleve,
carteira de saúde /
tua receita de quibe,
de quiabo, de quibebe /
do diabo que te carregue” (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, “Vê se me Esquece”)

“Levou seu retrato, seu trapo, seu prato / Que papel! / Uma imagem de São Francisco / E um bom disco de Noel” (Chico Buarque, “A Rita”)

“Rasgue as minhas cartas
/ E não me procure mais /
Assim será melhor/
Meu bem /
O retrato que eu te dei / 
Se ainda tens
Não sei! /
Mas se tiver
Devolva-me!” (do repertório de Adriana Calcanhotto, “Devolva-me”, composição de Renato Barros, Lilian Knapp)

“Junte tudo que é seu, seu amor, seus trapinhos / Junte tudo o que é seu e saia do meu caminho /
Nada tenho de meu /
Mas prefiro viver sozinho”(Custódio Mesquita e Evaldo Ruy “Saia do Caminho”)

 

 

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E o que dizer de Vinicius de Moraes, um craque no amor e na separação? Ele cantou o final dos relacionamentos de diversas maneiras e deixou em seu Soneto de Fidelidade versos a respeito do assunto que já têm ares de dito popular “...que seja infinito enquanto dure”.

Em “Mais um Adeus” revelou a mansidão da experiência e graça de quem tem humor a toda prova.

“Mais um adeus
/ Uma separação
/ Outra vez, solidão /
Outra vez, sofrimento /
Mais um adeus
/ Que não pode esperar / Olha, benzinho, cuidado
/ Com o seu resfriado
/ Não pegue sereno
/ Não tome gelado
/ O gim é um veneno
/ Cuidado, benzinho
/ Não beba demais
/ Se guarde para mim
/ A ausência é um sofrimento
/ E se tiver um momento /
Me escreva um carinho /
E mande o dinheiro
/ Pro apartamento
/ Porque o vencimento /
Não é como eu /
Não pode esperar” (Toquinho e Vinicius de Moraes)


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