Cultura
03.09.2015
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09.05.13
10 anos sem Jamil Snege
por Fabio Campana

Em julho, Jamil completaria 73 anos. Sua obra contém o cuidadoso trato da linguagem e a busca de formas que o situa entre os melhores inventores.


Passou rápido. Muito rápido. São 10 anos sem Jamil Snege. Como diz o Aroldo Murá, nestes dias de relembranças do Turco, envolvidos nas conversas sem compromissos cronológicos, apenas visões de momentos para sempre memoráveis sobre aquele que só quis ser o que foi: paranaense, provinciano, universal, iconoclasta, underground (ou avant-garde?), crítico de seu tempo, cronista, contista, sociólogo, marquetólogo, publicitário, modelador de políticos, homem de espírito, amigo, genioso, genial, “pão-duro”, generoso.

Em julho, Jamil completaria 73 anos. Sua obra continua à espera de novas edições. Jamil Snege é único. Sua obra contém o cuidadoso trato da linguagem e a busca de formas que o situa entre os melhores inventores. Mas a literatura de Snege é mais que isso. Também contém as paixões e desenganos que nos fazem reconhecer um mundo que preferiríamos não fosse o nosso. Leia a seguir um fragmento de um de seus principais textos.

 

 

Senhor

 

Hoje amanheci insatisfeito.

O pão estava amargo

e até o jornal que leio

todos os dias me pareceu de

uma insipidez atroz.

De repente, Senhor, lembrei-me

dos que não leem jornais –

mas os usam para embrulhar

restos de pão que os paladares

amargos deixam no prato

após uma noite insatisfeita.

Como deve ser delicioso

esse pão, Senhor,

depois que tu o adoças com

tua própria boca!

 

Às vezes lamento minha

má sorte – e o que me espera

em seguida é um dia luminoso.

Às vezes bendigo minha

fortuna – e logo após um

furacão desaba sobre minha cabeça.

Brincas comigo, Senhor?

Ou será que devo lamentar

a minha fortuna e bendizer

a má sorte como se o avesso

e o direito fossem iguais

para ti?

 

Quando eu era pequeno,

topava contigo a cada instante.

Adolescente, passei

a encontrar-te cada vez menos.

Adulto, duvidei que

algum dia tivesse visto o

brilho de tua face e

te busquei incessantemente

por todos os caminhos.

Não te encontrei,

Senhor, nem poderia.

O piolho que segue na juba

do leão jamais terá

consciência de que possui um

leão inteiro.

 

Tenho procurado por

todos os meios me destacar

dos demais.

É minha a intervenção mais

inteligente, o lance

intelectual mais audaz.

Procuro as luzes do palco

com o mesmo fervor

com que o peregrino procura

a tua face.

Que tolice, Senhor.

Dentro de alguns anos, numa

tumba escura, que

artifícios usarei para

chamar a atenção sobre o meu

pobre crânio descarnado?

 

Para onde vai o canto,

depois que os

lábios se fecham?

Para onde vai a prece,

depois que o coração silencia?

E os rostos que amamos

para onde vão, Senhor,

depois que nossas

pupilas se transformam

em gotas de lama?

Ontem vi uma andorinha

que devia ter uns

cinco milhões de anos.

Será que eu também

sobreviverei

ao que restar de mim?

 

Quando menino, nascido

serra acima, o que

mais eu desejava era o mar.

Eu queria apenas o mar

e mais nada – para nele

desfraldar meus

sonhos marinheiros.

Fui crescendo e ampliando

meus desejos.

Uma casa junto ao mar,

um barco a motor, festas,

empregados, piscina.

Obtive tudo isso, Senhor.

Mas aí então o mar dentro de

mim já havia secado.

 

Jamil Snege


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