Cultura
03.09.2015
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10.05.13
Da flor da pele ao pó do osso
por Adriana Sydor

O sentimento da mulher, pelos homens


A grande inspiração da música sempre foi a mulher. Emprestaram seus nomes a homens apaixonados, criaram intrigas em corações desavisados, lançaram olhares a trabalhadores distraídos.

Mas com o passar do tempo, dos tempos, a mulher foi ganhando voz e a música virou espelho também dos sentimentos femininos. A mulher passou de predicado a sujeito...

A nova linha patrocinou a criação de heterônimos mancos, que trocaram de pele em situações específicas, mas logo logo voltaram ao estado original. São os compositores que escreveram, e ainda escrevem, a tentar viver situação na condição feminina.

Chico Buarque? Sim. Mas antes dele outros fizeram esse papel.

O bom e velho Noel Rosa, lá por 1935, seguia sua vida de malandro do bem quando encontrou com a gaúcha Ema D’Ávila que atravessava grande problema: ela participaria de uma peça que tinha como temática homenagear bairros cariocas. Precisava cantar as belezas do Estácio no dia seguinte, mas não tinha composição para cumprir o contrato. Noel se superou em tempo, personalidade e predileção pela Vila Isabel: em poucas horas ele compôs na pele de uma mulher a ligação definitiva com o Estácio.

 

“Você tem vontade que eu abandone o Largo do Estácio / Pra ser a rainha de um grande palácio / E dar um banquete uma vez por semana / Nasci no Estácio / Não posso mudar minha massa de sangue / Você pode crer que palmeira do Mangue / Não vive na areia de Copacabana” (O X do Problema)

 

Ary Barroso também fez essa viagem. A mulher cheia de paixão e admiração por um folião de raça (mas que também devia dar lá suas voltinhas, porque encontrava o amante em cada esquina por onde passasse um bom cordão) foi a narradora, em primeira pessoa, da crônica bem humorada do Carnaval de 1939.

 

“Encontrei o meu pedaço na avenida  / De camisa amarela / Cantando a Florisbela / A Florisbela / Convidei-o a voltar pra casa em minha companhia / Exibiu-me um sorriso de ironia / E desapareceu no turbilhão da galeria” (Camisa Amarela)

 

Outro que também aproveitou a temática de uma mulher a observar o seu amado nas festividades de momo foi Assis Valente, em Camisa Listrada. Por conta das encomendas que Carmen Miranda lhe fazia, ele vestiu essa fantasia diversas vezes e em muitos sambas soube explorar, como se fosse mulher, situações tão adversas que fica difícil explicar.

 

“Deixou que ela passeasse na favela com meu peignoir / Minha sandália de veludo deu a ela para sapatear / E eu bem longe me acabando / Trabalhando pra viver / Por causa dele dancei rumba e fox-trote para inglês ver” (Fez Bobagem, samba de 1942, lançado por Aracy de Almeida)

 

Mas nem só de bom humor vivem as mulheres. Às vezes a conversa nem envolve choro, mas o assunto é tão sério que tudo é alinhavado de outra forma. Chico Buarque se especializou em observar damas e dramas e tentar traduzir tudo para o público curioso sobre o que se passa com elas.

 

“O meu amor / Tem um jeito manso que é só seu / De me deixar maluca / Quando me roça a nuca / E quase me machuca com a barba mal feita / E de pousar as coxas entre as minhas coxas / Quando ele se deita” (O meu amor, de 1977, para a peça Ópera do Malandro)

 

“Como num romance / O homem dos meus sonhos / Me apareceu no dancing / Era mais um / Só que num relance / Os seus olhos me chuparam / Feito um zoom / Ele me comia / Com aqueles olhos / De comer fotografia / Eu disse cheese / E de close em close / Fui perdendo a pose / E até sorri, feliz” (A História de Lily Brown, em parceria com Edu Lobo para o nosso orgulho, o balé O Grande Circo Místico, em 1982)

 

“Traiçoeira e vulgar / Sou sem nome e sem lar / Sou aquela / Eu sou filha da rua / Eu sou cria da sua / Costela / Sou bandida / Sou solta na vida / E sob medida / Pros carinhos seus / Meu amigo / Se ajeite comigo / E dê graças a Deus” (Sob Medida, de 1979, para o filme República dos Assassinos)

 

“Com açúcar, com afeto / Fiz seu doce predileto / Pra você parar em casa / Qual o quê / Com seu terno mais bonito / Você sai, não acredito / Quando diz que não se atrasa / Você diz que é operário / Vai em busca do salário / Pra poder me sustentar” (Com Açúcar, Com Afeto, de 1966)

 

Quando do riso se faz pranto, quando o jogo muda e a vida empurra pro outro lado, lágrimas sofridas, desesperadas, inundam a sensível existência feminina. Como que um homem pode saber dessas coisas? Alguns chegam bem pertinho. Caetano Veloso, que não tem a marca de compor dessa maneira, criou, de forma absoluta, a pensar nas experiências de Elza Soares, “Dor de Cotovelo”. A música cabe na boca de todos os ciumentos de plantão, sem escolher sexo, idade, raça, religião, mas ela foi escrita para Elza cantar:

 

“O ciúme dói nos cotovelos / Na raiz dos cabelos / Gela a sola dos pés / Faz os músculos ficarem moles / E o estômago vão e sem fome / Dói da flor da pele ao pó do osso / Rói do cóccix até o pescoço / Acende uma luz branca em seu umbigo / Você ama o inimigo / E se torna inimigo do amor”

 

Compor para uma mulher cantar é uma coisa. Mas compor como se fosse uma mulher é outra bem diferente. Por isso, chama tanto a atenção o homem que encosta na difícil tarefa de entender o que acontece do outro lado. Se as mulheres carregam muita coisa dentro da bolsa, imagine na alma...

  

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Elis Regina gravou “Atrás da Porta” em 1972, época em que terminava o casamento com Ronaldo Bôscoli. Talvez por ter tão vivo o episódio da separação e por estar no começo do romance com César Camargo Mariano e, também por isso, com os sentimentos à flor da pele, ela tratou a música de maneira muito intensa. No livro Noites Tropicais – Solos, Improvisos e Memórias Musicais Nelson Motta escreveu:

“César dispensou os músicos, pediu para todo mundo sair, para colocarem o piano no meio do estúdio, baixarem as luzes e deixarem só ele e Elis, para a gravação do piano e da voz-guia de ‘Atrás da porta’. Extravasando seus sentimentos, misturando as dores da separação com as esperanças de um novo amor, Elis cantou, mesmo sem a segunda parte da letra, com extraordinária emoção, com a voz tremendo e intensa musicalidade. Na técnica, quando ela terminou, estavam todos mudos. Elis chorava abraçada por César. Juntos, César e Menescal, foram levar a fita para Chico, que ouviu, chorou e terminou a letra ali mesmo, no ato.”

 

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Há também o inverso: mulheres que escrevem para homens cantar. Esse é o caso, pelo menos uma vez, de Thereza Tinoco, que compôs o tema Viajante, ocupado pela TV Globo, na época da novela Baila Comigo, para um personagem de Tony Ramos. Ney Matogrosso emprestou voz e acabou por tornar a compositora conhecida.

“Eu me sinto tolo como um viajante / Pela tua casa, pássaro sem asa, rei da covardia / E se guardo tanto essas emoções nessa caldeira fria / É que arde o medo onde o amor ardia / Mansidão no peito trazendo o respeito / Que eu queria tanto derrubar de vez / Pra ser teu talvez, pra ser teu talvez / Mas o viajante é talvez covarde / Ou talvez seja tarde pra gritar que arde no maior ardor / A paixão contida, retraída e nua / Correndo na sala ao te ver deitada / Ao te ver calada, ao te ver cansada, ao te ver no ar”


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