Cultura
03.09.2015
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19.08.13
Lilian Gassen: uma pintura para ver
por Bruno Oliveira

A arte de Lilian por Bruno Oliveira

Foto: Daniel Snege
Foto: Daniel Snege
Foto: Daniel Snege

No ateliê da artista, dezenas de pequenos vidros de tinta se enfileiram por debaixo das pinturas, algumas prontas, outras ainda por fazer. Em um raciocínio rápido, não se pode dizer qual será a próxima cor, quiçá dizer quais daquelas já foram postas na pintura. É verdade, no entanto, que nada acontece de muito extraordinário no ato de transpor a tinta para a tela. Também, porque não se trata disso, afinal, não é essa a preocupação do pintor. O que lhe preocupa é o efeito que todo este engenho vai ter no fim. Por isso inventa pintar de outros jeitos, por isso antes do arremate, da última cor, da derradeira pincelada, a pintura não se anima, não ganha vida diante do observador. Porque uma pintura é sempre feita para o olho. Lilian Gassen deve saber disso, a julgar pelas suas pinturas, de intenso colorido e que nunca ficam prontas antes da última pincelada, antes da última cor. Essa história, no entanto, é um pouco mais antiga, pois mesmo antes destes trabalhos, o olhar e o seu exercício já eram temas de grande importância dentro da produção da artista. De fato, para Lilian Gassen o olhar é uma preocupação constante, desde o início da sua carreira, como ela mesma está sempre pronta a confessar.

É justamente desta preocupação com o olhar que surgem estas pinturas, esta série de trabalhos batizada de Belvedere. O nome não é um acaso qualquer: belvedere é este lugar para o olhar, este mirante onde o observador encontra uma vista privilegiada. Mas se a partir do conceito de olhar, a relação entre a pintura e o belvedere é absolutamente óbvia, ela é também bastante nebulosa. Ora, de que maneira se estabelece o link entre o belvedere, como um lugar a partir do qual se olha, e a pintura, como uma coisa para qual se olha? De um jeito ou de outro este nome de batismo diz muito das pretensões da artista. Belvedere acusa a vontade de pensar o olhar no seu exercício, pensar mesmo o lugar do olhar. Já na sua produção anterior Lilian procurou construir uma arquitetura do olhar. Ou ainda, e seria mais preciso dizer assim, uma arquitetura para olhar: olhar de cima, de baixo, de frente, e através, por buracos e frestas; olhar o que está velado, e escondido, o que está do outro lado do muro e o que está do lado de cá.

Hoje a artista trabalha com pequenos guaches sobre papel, objetos em aço damasco, e pinturas a óleo de grande escala. Mas apesar de alguma variedade persistir, sua produção se concentra nas grandes pinturas, de tipo não figurativo, por assim dizer. Daquela produção do início de sua carreira, Lilian Gassen conserva a vontade de pensar uma arquitetura para olhar; neste caso, o desafio é procurar fazer isso a partir da pintura, um meio historicamente ligado ao olhar do deleite, à frontalidade e à planura, cuja habilidade maior é guardar espaços e tempos distantes do real. Cuja maior habilidade é fazer imagem. Tentar constituir esta arquitetura passa, portanto, pela reflexão sobre o estatuto da própria pintura no contexto contemporâneo. É preciso pensar o lugar do observador a partir do lugar da pintura, e vice-versa.

Um problema de tamanha proporção exige uma dose de astúcia. Lilian Gassen encontra o que precisa em um dos mais tradicionais problemas da pintura: o embate entre o desenho e o colorido. Um embate já presente no ato inaugural das suas pinturas, pois a artista começa cada uma das suas telas traçando um único contorno e depois escolhendo a cor para ele. A partir deste primeiro contorno a artista vai traçando os outros. No seu processo, Lilian Gassen mantém esta ordem clássica da pintura: primeiro o desenho, depois a cor. Uma ordem, no entanto, que não é estanque. Durante o fazer, o que se estabelece é uma negociação dialética entre o raciocínio projetivo do desenho e a experiência da cor.

Primeiro, a artista pensa os contornos, às vezes vários deles já são imaginados. Como uma imagem mental, concebe as curvas de cada linha, os seus possíveis movimentos e desenvolvimentos. Nesta etapa, ainda que nenhum traço seja colocado sobre a tela, ela está envolvida inteiramente em um exercício próprio do desenho, pois está imersa em uma atividade de ordem projetiva. Num segundo momento, a cor de cada contorno é escolhida e pensada em relação à área ocupa, à cor que se avizinha a ela e ao conjunto de toda a pintura. Escolher a cor é também pensar a cor, repetidamente. Um exercício executado caso a caso, já que cada cor posta na tela produz o repensar de toda a pintura e pede um novo raciocínio.  Às vezes, a cor provoca até a mudança no desenho já imaginado para aquela parte, abrindo uma intensa negociação entre os dois fundamentos.

Mas neste jogo clássico do linear e do pictórico, é preciso entender que Lilian Gassen não usa o desenho para dar forma aos corpos e a cor como preenchimento deles. Já no seu processo o desenho e a cor estão juntos. Quando a pintura fica pronta, isso se intensifica. Desenho e cor se tornam ainda mais imbricados, inseparáveis e indiscerníveis. O desenho já não vem antes, como no processo, mas une-se ao colorido, na simultaneidade da pintura. Ambos parecem se tornar uma mesma coisa e funcionam ao mesmo tempo, no instante em que se olha para a pintura. Neste instante, a cor é preenchimento e contorno, pois, ao mesmo tempo em que preenche, contorna. De fato, muitas vezes uma linha que atravessa a pintura é preenchimento em determinada área, para ser contorno em outra. Esta ambiguidade, alcançada na dialética entre desenho e colorido, é extremamente importante nas suas pinturas, por que é através dela que se estabelece o diálogo entre a pintura e o observador.

A ambiguidade desenho/cor a princípio é uma oposição teórica, histórica, demasiadamente abstrata e nem um pouco prática, mas no jogo tramado com o observador ela ganha vida. Ela se dobra em múltiplas ambiguidades, espalhadas pelo plano da pintura, criando áreas de tensão, pontos de atenção sucessivos, que constroem um plano pictórico sem hierarquia.  Como resultado, as pinturas de Lilian Gassen causam até mesmo uma espécie de desorientação, pela inquietude a que sujeitam o olhar. Diante delas o olho não descansa, pelo contrário, está sempre em movimento, sendo exigido a todo instante. As pinturas se atualizam no exercício do olhar, em cada situação incerta, se achando e se perdendo em uma completa instabilidade. Todas estas situações de multiplicidade se convertem em uma pintura difícil de ver, não por ser hermética, mas por que não permite um olhar do deleite, que simplesmente espera pela beleza, especialmente quando diante da arte.

De fato, para ver a pintura de Lilian Gassen certo esforço é requerido. Em vez de esperar pela beleza é preciso olhar mais do que o nosso costume. Isto geralmente corresponde uma série de ações, todas elas distantes de um olhar passivo. Assim, diante de uma pintura de Lilian Gassen, pode ser comum andar de um lado para outro, caminhar nos arredores do trabalho, passar do detalhe para o geral, aproximar-se, afastar-se, abaixar-se algumas vezes, olhar por sobre os óculos, semicerrar os olhos, talvez espiar de canto de olho ou mesmo ficar junto à parede, para ver a pintura meio de lado. Eu mesmo, quando diante destas pinturas, sigo um enredo parecido, ainda que sem nenhuma intenção. Nesse exercício feito quase sem querer, o que eu procuro, na verdade, é a melhor vista, um ponto qualquer para repousar o corpo e olhar com tranquilidade.

Belvedere, por isso, é um nome absolutamente apropriado para esta série de trabalhos. Pois estas pinturas são mesmo capazes de configurar um espaço para o exercício do olhar. Elas não são paisagens, não constroem um cenário, não fazem, perfazem, nem simulam uma possível vista para um belvedere ou mirante qualquer. Em vez disso, evocam o mirante, imprimem um belvedere pela sua falta, pois diante das suas pinturas temos a sensação que precisamos de outra arquitetura para poder ver. De fato, suas pinturas vão tomando uma área toda para si; ocupam um lugar dado pela movimentação do observador em torno delas. No fim, cada pintura reivindica muito mais espaço que uma porção da parede.

Todo este espaço, este lugar que falta, esta arquitetura ausente é na verdade um sintoma do olhar que nos falta. Os problemas de Belvedere se referem ao estatuto deste olhar na contemporaneidade. As pinturas desta série procuram por um olhar capaz de pensar, um olhar capaz de gerar um exercício de reflexão. Enfim, um tipo de olhar que parece irrecuperável em um mundo onde as imagens se entregam tão facilmente quanto são produzidas. Negando o olhar do deleite, e também se afastando da visualidade instantânea da imagem publicitária, Lilian Gassen toma o terceiro caminho, e na ambiguidade do embate desenho/colorido encontra um lugar onde o ato de ver ainda conserva a sua importância, onde o olhar não é estanque. Dali, ela vai traçando suas linhas, cobrindo suas telas com situações instáveis. Se assim a artista faz pinturas difíceis de ver, ainda mais difícil é parar de olhar para elas. Porque no fundo suas pinturas são daquele tipo de arte que não é feita somente para ser vista, mas que serve para nos fazer ver. 

 

Bruno Oliveira é artista plástico.


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