Outubro é mês de Vinicius de Moraes e é também mês das crianças. É tempo de revisitar a Arca de Noé.
Vinicius se atirou no universo infantil pela primeira vez em 1950, quando alguns de seus poemas com essa temática, e feitos para seus filhos, ganharam melodias. O paranaense Paulo Soledade tratou de musicar São Francisco, que teve gravação de Silvio Caldas. O caso é que Rubem Braga ouviu, gostou e convenceu, mesmo à revelia do Poetinha, o músico a continuar com o trabalho em outros poemas. E a partir da conversa, que rolou em um almoço na casa de Silvio, Paulo Soledade musicou também O Relógio, O Peru, A Formiga, A Cachorrinha e O Pato, esta uma das mais famosas da coleção: “Lá vem o Pato / Pata aqui, pata acolá / Lá vem o Pato / Para ver o que é que há / O Pato pateta Pintou o caneco / Surrou a galinha / Bateu no marreco / Pulou do poleiro / No pé do cavalo / Levou um coice / Criou um galo...”.
Apesar de a produção ser vasta e contínua, as cortinas populares ainda estavam fechadas para os poemas infantis musicados. Foi o mercado editorial quem primeiro se dedicou à revelação dessa personalidade do Poeta, tão diferente do que o público conhecia. A Editora Sabiá lançou em 1970 A Arca de Noé – Poemas Infantis de Vinicius de Moraes. A publicação, com ilustrações da suíça Marie Louise Nery, teve 20 temas, incluindo os já musicados por Soledade, e revelou que o poeta do amor e dos sonetos podia, livre das métricas, dar uma voltinha pelo jardim da infância com o mesmo talento para comoção e comunicação – o livro foi um sucesso e teve várias reedições. Em 1998, quando a Cia. das Letras fez novo lançamento, a obra engordou: 32 poemas infantis.
Com a chegada de Toquinho à vida artística de Vinicius de Moraes a produção do Poeta cresceu em turnês, composições e discos. E esse fôlego também passeou pelas criações infantis. Toquinho fez música para outros poemas da fauna de Vinicius e antes que a A Arca de Noé chegasse ao Brasil, ela navegou pelas águas italianas. Em 1972, Sérgio Bardotti produziu o disco L’Arca – Canzoni per Bambini, di Vinicius de Moraes, o modelo é o que conhecemos na versão brasileira: artistas respeitados na cena italiana emprestaram interpretação às canções. Os arranjos ficaram por conta do argentino Luis Enríquez Bacalov. Vinicius participou das gravações, dando voz a cinco faixas, entre elas, La Casa, em que dividiu interpretação com Sergio Endrigo, Ricchi e Poveri e o coro infantil The Plagues: “Era una casa molto carina / Senza soffitto senza cucina / Non si poteva entrarcdi dentro / Perchè non c’era il pavimento / Non si poteva andare a letto / Perchè in quella casa non c’era il tetto / Non si poteva fare la pipì / Perchè non c’era vasino lì…”. A assinatura da melodia também é de Vinicius.
O disco fez sucesso na Itália e é fácil encontrar áudio e vídeo em canais como o Youtube. A audição é um outro tipo de experiência a respeito dessa coleção...
Só depois de oito anos é que o Brasil conheceu a Arca de Vinicius. Ele não chegou a ver o disco gravado e morreu em meio ao processo de traduções, escolha e palpites de intérpretes. Essa foi a última produção do Poetinha.
Para o mercado fonográfico brasileiro foram lançados dois álbuns. O primeiro, em 10 de outubro de 1980 (três meses depois da despedida definitiva de Vinicius), numa jogada admirável de marketing, que associou o lançamento ao especial produzido pela Globo. Um time da linha de frente da MPB se dedicou ao repertório infantil com graça, humor e muito talento. Os arranjos de Rogério Duprat, as ilustrações de Elifas Andreato, a produção de Fernando Faro, músicos que vão de Amilson Godoy a Marçal, de Arthur Maia a Mutinho, e intérpretes como Elis Regina, Milton Nascimento, Boca Livre, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola garantiram a qualidade para manter o alto nível de obra tão impecavelmente escrita, que não subestima o ouvinte mirim a tratar temas variados com inteligência e simplicidade.
O segundo volume, apesar de pronto logo em seguida do lançamento do primeiro, chegou ao mercado somente um ano depois.
O sucesso das Arcas de Vinicius não precisa ser reconhecido pelo número de tiragem, o fato de os álbuns percorrerem até hoje prateleiras de lojas, salas de aula e estarem na ponta da língua das crianças conta mais que a impressionante quantidade de 3 milhões de cópias vendidas.
Vinicius de Moraes, o Poeta da Paixão, criou a obra de referência para os pequenos ouvintes e os grandes apreciadores da boa música! Vinicius de Moraes, o Poetinha, tratou de maneira grandiosa a realidade infantil e os sonhos adultos! Vinicius de Moraes, o Poeta e diplomata, ensinou a valiosa lição de qualidade para todos os públicos – ai de quem tem tudo isso à mão e não aproveita!
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Há na MPB outros grandes nomes que também fizeram passeios e visitas ao universo infantil:
• Braguinha é o autor de imensa obra para crianças. As coleções do autor fazem parte do cancioneiro dos pequenos há décadas. Não há criança, de 8 a 80, que não saiba cantarolar “Pela estrada afora / Eu vou bem sozinha / Levar esses doces para vovozinha...” ou “Eu sou o pirata da perna de pau / Do olho de vidro / Da cara de mau”.
• Toquinho, em voo solo, cercado de grandes parceiros, também tem obra vasta nessa vertente, como, por exemplo, Casa de Brinquedos, de onde vem a composição assinada em parceria com Mutinho, O Caderno: “Sou eu que vou seguir você / Do primeiro rabisco / Até o be-a-bá / Em todos os desenhos / Coloridos vou estar / A casa, a montanha / Duas nuvens no céu / E um sol a sorrir no papel...”
• Chico Buarque tem em seu currículo a tradução e adaptação d’Os Saltimbancos. Na peça, o humor da História de Uma Gata: “Nós, gatos, já nascemos pobres / Porém, já nascemos livres / Senhor, senhora ou senhorio / Felino, não reconhecerás…”
• Gilberto Gil é dono do clássico Sítio do Pica-Pau Amarelo: “Marmelada de banana, bananada de goiaba / Goiabada de marmelo / Sítio do Pica-Pau amarelo...”
• Luiz Tatit e Sandra Peres desenvolveram o Palavra Cantada, novas canções para a garotada, na lista, Sopa do Neném: “O que que tem na sopa do neném? / Será que tem espinafre? / Será que tem tomate? / Será que tem feijão? / Será que tem agrião?”
• Adriana Calcanhotto criou o que ela mesma define como heterônimo, Adriana Partimpim, para se comunicar com as crianças. No álbum de estreia, ela canta Oito Anos, de Dunga e Paula Toller: “Por que você é flamengo / E meu pai botafogo? / O que significa “impávido colosso”? / Por que os ossos doem / Enquanto a gente dorme? / Por que os dentes caem? / Por onde os filhos saem?…”