Cultura
03.09.2015
03.09.2015
03.09.2015
03.09.2015
03.09.2015
11.10.13
Crítica: O Paraíso em chamas
por Guido Viaro

Escritor Guido Viaro fala sobre a reedição de Paraíso em chamas, livro de poesias de Fábio Campana.


O grito de desistência, pungente, tresloucado, depois o silêncio, aceitando a inevitabilidade dos tijolos da vida. As chamas destruindo uma a uma as estátuas de sal construídas na juventude, os amores, os amigos, a cidade, as certezas desaparecendo para dar lugar ao cheiro manchado de morte. A juventude da amante, a presença do pai embalado no mito-recordação da infância, o rio que não cessa de levar embora as pétalas das flores que despencam, a voz que não para de pedir socorro, e depois teme sua chegada, pois a salvação tem o peso da pena capital.

O Paraíso em chamas é cheio dessas belas contradições, o tempo perdido não deve ser reencontrado, é um animal empalhado cujo corpo rígido é caricatura da vida. Para as dores não há anestésicos, e mesmo os lamentos são inúteis (mas nem por isso devem deixar de existir). O incêndio seduz, destruindo nossos brinquedos encantados, enquanto sorrateiramente os braços da morte nos tocam os ombros. A esses dedos descarnados permitimos intimidades, aceitamos seus afagos que sorrateiramente nos marcam o rosto. O crânio sem olhos causa cada vez menos repulsa, até o ponto em que, inconscientemente, desejamos enxergá-lo no espelho.

O ideário aceita as gorduras cotidianas e ganha flexibilidades repulsivas para a juventude. A mulher linda, que não veio surpreendê-lo no trem Orient Express, perdeu seu lugar no vagão dos sonhos, aliás, essa linha há tempos foi desativada por falta de passageiros. Tudo isso poderia soar como o libreto da Ópera dos Covardes, não há uma voz que não encoste na dúvida. O barítono tem quatorze anos e oscila entre graves excessivos e agudos inconsequentes, e essa falta de controle vocal é a grande riqueza do livro. O fracasso é o pelotão de fuzilamento esperando o dia raiar, o rigor técnico com que os poemas são escritos (sem que para isso necessitem de molduras douradas), são os rifles sendo lubrificados e carregados, enquanto nós leitores fazemos nossa última refeição e percebemos as primeiras luzes do novo dia se arrastando pelo chão da cela. O instante em que os cantores rompem o silêncio, é o mesmo em que os gatilhos são apertados. A música se transforma no rifle e anula a morte. Porque a poesia é a única possibilidade de fuga, a remissão possível de todos os pecados originais.

O Paraíso em chamas viceja sumos ardentes, por isso é um daqueles livros que André Gide chamava de “Sacos cheios de sementes”.


Guido Viaro é escritor.

 


Tags:



TAMBÉM NOS ENCONTRAMOS AQUI: