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Mais do que um poeta, Manoel de Andrade considera que seus livros não são apenas poesia. São, segundo Andrade, “Um documento histórico, porque todos os poemas trazem uma consigna geopolítica de luta e, paradoxalmente, uma mensagem de paz e esperança”.

Levando em conta o histórico do autor, é coerente considerar que um livro de poesia pode representar mais do que uma reunião de poemas. Com a publicação de seus versos, Andrade sofreu perseguição política e enfrentou resistência militar em vários países da América Latina nos anos 1970. Com a publicação de Saudação a Che Guevara o poeta teve que deixar o Brasil.

A luta e a obra de Andrade fizeram com que o autor percorresse 16 países da América Latina. A jornada está agora reunida em seu mais recente livro Nos Rastros da Utopia (2014). Antes, já havia publicado Poemas para a Liberdade (1970) – com tiragem esgotada em diversos países, e Cantares (2007) – seu retorno à poesia.

Em entrevista concedida à revista Ideias, o poeta falou sobre a luta contra a ditadura, contou um pouco da sua obra e relembrou sua jornada pela América Latina, que, para o autor, é o melhor lugar para se viver.

Com a publicação de Cantares (2007), você retomou a publicação de poesia depois de um longo período. Por que este intervalo?

Realmente, foi um longo intervalo. Mais de 30 anos. Algo estranho na vida de um escritor. Meu último poema, da fase latino-americana, chamado Liberdade, foi escrito em 1971, no México. Depois disso, começa um intenso período de viagens com palestras, conferências e recitais nos Estados Unidos e depois no Equador, no caminho de minha longa volta ao Chile, em dezembro de 1971 e, meses depois, para o Brasil, em meados de 1972.

Somente voltei a escrever poesia em 2002. Ou seja, depois de 31 anos. Por quê? Fortes razões de ordem familiar me fizeram voltar, justamente na época mais perversa do regime ditatorial, obrigando-me a entrar no anonimato literário, social e profissional.

A luta contra a ditadura foi um dos motivos por esse intervalo?

De 1972 a 1975, as operações militares para acabar com a Guerrilha do Araguaia, bem como a crueldade com que os DOI-Codi iam aniquilando os quadros da guerrilha urbana, geraram o pânico entre todos aqueles militantes ou intelectuais que haviam se posicionado, na ação ou no ideário, contra a ditadura. As detenções, torturas, execuções e desaparecimentos entraram em sua fase aguda em todo o país.

Alguns meses depois de minha chegada, estava sendo procurado pelo DOPS. Transferi meu registro da OAB para Santa Catarina, com o objetivo de advogar em meu Estado. Mas também lá senti que não poderia assumir publicamente qualquer trabalho. Foi neste contexto que encontrei, em Curitiba, uma forma de trabalhar sem que os agentes da ditadura nunca soubessem onde eu estava. Fui vender a Enciclopédia Delta Larousse, numa atividade itinerante, de cidade em cidade, de Estado em Estado. Tornei-me campeão estadual e nacional de vendas, cheguei ao topo na hierarquia dos títulos, à classe gerencial e palestrante em técnicas de marketing.

De que forma isso mudou o rumo de sua vida?

Tive um grande sucesso financeiro, adquiri bens, casei pela terceira vez, e nesse torvelinho incessante de viver sempre viajando, fui perdendo o interesse, não pela leitura, mas pela literatura em si, esquecendo-me que era poeta, e dos rastros que deixei pelos longos caminhos da América Latina. Em 1987, deixei a Delta Larousse, convidado a criar um setor comercial de uma empresa de medicina de grupo, onde permaneci na área gerencial até o ano passado. Quero também dizer que, apesar do meu desinteresse pela literatura, durante todos esses anos fui um leitor constante da filosofia, da história e das religiões, tornando-me um profundo estudioso do kardecismo e adepto praticante da doutrina espírita.

Como foi o processo de retomada?

Minha retomada à criação poética aconteceu numa misteriosa circunstância. Já expliquei algures que minha volta à poesia deu-se por uma intrigante inspiração das musas. Na campanha eleitoral para governador do Paraná, em 2002, Roberto Requião – velho amigo, colega da Faculdade de Direito e companheiro de ideais na juventude –, foi covardemente acusado de inverdades e calúnias pelos seus inimigos políticos. Indignado, comecei a escrever alguns versos, relembrando o tempo em que saíamos em passeatas de protesto contra a ditadura, dos sonhos de justiça e liberdade que partilhávamos e que ele brilhantemente colocava na sua afiada oratória, e eu no lirismo dos meus versos.

Lembrei-me também do caminho que me indicou, e dos amigos a quem me recomendou, no Paraguai, quando, em março de 1969, tive que sair do Brasil, num dos momentos mais difíceis de minha vida. Todo este gesto solidário se transformou no poema Tributo, tornado público num jornal da época e que consta do meu livro Cantares.Foi com este poema que voltei a escrever poesia, em setembro de 2002, depois de 31 anos de abstinência literária.

Você consegue enxergar uma marca na literatura produzida nesses países? O que caracteriza a poesia latino-americana?

Meu interesse naqueles anos e ainda hoje pela literatura latino-americana sempre foi dirigido para os autores comprometidos, sobretudo com o indigenismo e as lutas sociais, e o que caracteriza essa literatura, na prosa e na poesia, é a denúncia e a resistência.

Este espaço não me permite nominar todos os autores, cujas obras estudei – e tudo isso está amplamente analisado Nos Rastros da Utopia– e que se comprometeram com essas lutas, mas me lembro aqui de Mariano Melgar, Pablo Neruda, Armando Tejada Gómez, Ariel Danton Santibañez Estay, Eliodoro Aillón Terán, Javier Heraud, Cesar Vallejo, Luis Nieto, Leonel Rugama, Tirso Canales, Roque Dalton e Otto René Castillo entre os poetas, e Oscar Soria Gamarra, José María Arguedas, Roa Bastos, Ciro Alegria, Manuel Scorza, Jorge Icaza, Miguel Angel Astúrias e Carlos Fuentes entre os prosadores.

 

Poemas para a liberdade teve grande repercussão, com edições esgotadas em vários países. A que você atribui esse alcance?

Este livro nasceu espontaneamente pelas mãos dos estudantes peruanos de Arequipa, em janeiro de 1970, que propuseram gratuitamente uma edição mimeografada de 1.500 exemplares. Dois meses depois, os estudantes de Cusco lançaram duas edições, respectivamente de 700 e 1.000 exemplares mimeografados e em junho daquele ano, em La Paz, meu livro tem sua primeira edição, de 2.000 exemplares, lançada graficamente, e sem nenhum custo para mim, pelo Comitê Central Revolucionário da Universidad Mayor de San Andrés.

Na verdade, os fatos que levaram à edição boliviana de Poemas para la libertad é uma história espiritualmente misteriosa e inacreditável do ponto de vista editorial e que é contada com todos os seus detalhes no meu livro Nos Rastros da Utopia, envolvendo o jornalista brasileiro Paulo Canabrava Filho, na época militante da ALN – Aliança Renovadora Nacional – e correspondente da France Press, exilado na Bolívia, e o poeta e jornalista boliviano Jorge Suárez.

E as edições em outros países, como aconteceram?

Na Colômbia, a obra foi editada pela Nova Era, cujos 1.500 exemplares se esgotaram em poucas semanas nas livrarias de Cali e Bogotá; duas edições norte-americanas editadas em 1971, em San Diego, pela Grandma´s Camera; a edição equatoriana editada pela Universidade Central do Equador, em 1971 e, finalmente, em 2009, a edição bilíngue brasileira editada pela Escrituras.

Meus Poemas para lalibertad também tiveram edições parciais na Nicarágua, em plena ditadura de Somoza, editadas pela Universidade de El Salvador e publicados, declamados e debatidos em Tampico, no México, em fevereiro de 1971, durante as comemorações do 37º aniversário de morte de Augusto Cesar Sandino, onde participei, a convite dos sandinistas exilados no México. Dois de seus poemas –Canção para homens sem face e Canção de amor à América – foram publicados pela Revista Civilização Brasileira e o último foi comentado pelo crítico Wilson Martins ao afirmar que “é, com certeza, um dos belos poemas do nosso tempo”.

Quanto ao seu alcance e repercussão, creio que se deve ao caráter libertário dos meus versos, à imagem revolucionária que se criou em torno de minha pessoa como um poeta desterrado e expulso de vários países por minhas convicções políticas, assim como pela minha incansável militância poética, peregrinando ao longo de toda a América Latina, num tempo em que a juventude estava mobilizada ideologicamente e, diferentemente da juventude dos nossos dias, amava realmente a poesia.

Além do sucesso editorial, o livro teve grande influência política. Essa repercussão política já era esperada?

Na década de 70, o continente estava semeado de sonhos e esperanças. A revolução cubana, a imagem heroica do Che, as repercussões das revoltas estudantis de 1968 na França, no Brasil e em quase todo o mundo eram os ingredientes que contagiavam politicamente a juventude. Meu livro não era apenas um livro de poesia. Era um documento histórico, porque todos os seus poemas trazem uma consigna geopolítica de luta e, paradoxalmente, uma mensagem de paz e esperança.

Há um poema chamado Requien a um poeta guerrilheiro, dedicado ao jovem poeta peruano Javier Heraud, assassinado pelo exército em 1965, e que também foi uma das causas da minha expulsão do Peru, em 1969. Depois veio minha expulsão da Colômbia e por aí vai, para dizer que meu livro, muito mais que um livro de poesia, foi um gesto de convocação e resistência, uma trincheira de luta e uma bandeira desfraldada por um mundo melhor, tendo seus versos sido publicados em panfletos, jornais, grandes revistas, cartazes, publicações acadêmicas, livros e antologias, ao lado de Mario Benedetti, Juan Guelmann, Jaime Sabines e outros grandes poetas hispano-americanos.

Há também um poema chamado Saudação a Che Guevara, que foi a causa da minha saída precipitada do Brasil, em 1969. Um outro poema, chamado O guerrilheiro, foi dedicado a Inti Peredo, lugar-tenente de Che Guevara na guerrilha boliviana, escrito em 1969, em Cochabamba, alguns dias depois do seu assassinato por militares em La Paz, e que foi um dos motivos porque fui “convidado” a deixar a Bolívia em 48 horas.

Conte um pouco mais sobreesse episódio de Saudação a Che Guevara.

Este poema foi escrito em outubro de 1968 para comemorar o primeiro ano da morte de Che Guevara. Por iniciativa do livreiro José Ghignone (o Dude) foram mimeografadas 3.000 cópias e distribuídas, pelo pessoal do Partidão, em universidades, centros acadêmicos, sindicatos e organizações de classe. A distribuição foi feita gradativamente entre o fim de outubro e o começo de dezembro, até o dia 13, quando foi publicado o AI-5. E daí tudo mudou. O que fazer se o poema já fora quase totalmente distribuído e pregava a luta armada?

Nos primeiros dias de março de 1969, viajei ao Rio de Janeiro para um encontro com o poeta Moacyr Félix e o editor Ênio Silveira, a fim de entregar os originais para a publicação da série Poesia viva, que a editora Civilização Brasileira estava lançando e para a qual eu fora convidado, depois da boa repercussão que teve meu poema Canção para os homens sem face, recém-publicado no n° 21/22 da Revista Civilização Brasileira.

 Ao voltar para Curitiba, no dia 12 de março, encontrei, no bar Velha Adega alguns amigos e entre estes o escritor e publicitário Jamil Snege e a estudante de sociologia Elci Susko. Ela me relatou, angustiada, que, por duas vezes, fora abordada na Faculdade, levada por agentes de segurança e interrogada pelo delegado regional da Polícia Federal sobre o meu paradeiro.  Ele tinha em seu poder um exemplar do panfleto “Saudação a Che Guevara” onde constava a autoria do poema e me acusava de “comunista”, de “pregar a luta armada” e ser “um inimigo da pátria”.

Naquela época, a dois meses da publicação do AI-5, já havia começado a “caça às bruxas”, no Brasil inteiro. Os suspeitos de subversão eram presos, mantidos incomunicáveis e muitos começaram a sumir. Naquela mesma noite, já em pânico com o relato da Elci e preocupado com minha esposa e minha filha, fui aconselhado pelo Jamil a sair da cidade. No dia seguinte, pela manhã, fui à casa do Requião, e, como já adiantei, ele abriu o caminho para que, no dia 15 de março de 1969, eu rumasse para Assunção recomendado para seus amigos, o pintor e escultor Angel Higinio Iegros Semidei e os irmãos Francisco e Mario Rojas.

O poema repercutiu em outros países também?       

Sim, em fins de setembro de 1969, depois de passar pelo Paraguai, Argentina e Chile, eu já estava em Cochabamba (BOL), como convidado a um Congresso Nacional de Poetas. Um dia, no Hotel Boston, onde a Comissão do Congresso me hospedou, apareceu um casal pedindo uma cópia do meu poema ao Che, para ser publicado num cartaz, em comemoração ao segundo ano de sua morte.

Este casal era o já então conhecido jornalista chileno Elmo Catalán Avilés (Ricardo) e a jovem boliviana Genny Köller Echallar (Victoria), dois quadros guerrilheiros do ELN (Ejército de Liberación Nacional), como fiquei sabendo, posteriormente, quando  ambos foram assassinados por um militante do próprio ELN (Anibal Crespo Ross), ante a decisão do casal de abandonar a Organização, em razão da gravidez de Genny.

O poema foi publicado num grande cartaz ilustrado por Atílio Carrasco, um dos grandes pintores bolivianos, que havia sido aluno do célebre pintor muralista David Alfaro Siqueiros, no México. Como eu já tinha sido interrogado e ameaçado de expulsão do país, pelo delegado da DIC (Diretoria de Investigações Criminais), decidi entrar no anonimato e o cartaz, com a imagem e o poema do Che, foi publicado como Saludo al Che Guevara e assinado como El Poeta. O poema-cartaz, editado pela FUL, (Federación Universitaria Local) de Cochabamba, passou a ser vendido no meio estudantil e distribuído para todas as FUL da Bolívia.

Dias depois, como a polícia política conseguiu descobrir a minha autoria, fui detido e intimado a sair do país em dois dias. Pela segunda vez, meu poema ao Che me obrigava a buscar novos caminhos.

Como você analisa o papel que a literatura teve na luta contra a ditadura?

Ela não teve o papel que deveria ter.  Os comprometimentos foram poucos.  Acho que o teatro foi o grande palco dessa luta e onde se destacaram o Grupo Opinião do Rio de Janeiro e o Teatro de Arena de São Paulo. Lembro-me que, em 1965, o Grupo Opinião chegou a Curitiba com a peça Liberdade, Liberdade, trazendo em seu elenco Jairo Arco e Flecha, Tereza Raquel e Paulo Autran, de quem me tornei amigo.

A peça marcou época no teatro brasileiro e citava textos em prosa e poesia de autores famosos, para protestar contra a repressão imposta pela ditadura. Depois de minha volta ao Brasil me afastei da vida cultural e da literatura, mas percebi que, sobretudo depois do AI-5, a criação literária vivia amordaçada e desiludida de seus próprios objetivos.

Não se editavam muitos romances naquela época e, apesar do meu distanciamento, li algumas obras como Quarup e Bar Don Juan, de Antonio Callado, e Pessach: A Travessia, de Carlos Heitor Cony.

O texto de apresentação do livro Nos rastros da utopia – uma memória crítica da América Latina dos anos 70, apresenta você como um caminhante incansável que fez uma fantástica peregrinação por 16 países da América. Fale um pouco dessa jornada.

É uma jornada que teve a dimensão gráfica de 912 páginas. É difícil resumir em poucas linhas essa imensa aventura. O que posso dizer é que na década de 70 tudo estava no ar e bastava o compromisso de sonhar para que os caminhos se abrissem magicamente. Contudo, nem todas as portas da realidade se abriram aos ideais e nem todos os visionários que lutaram por uma nova sociedade conseguiram sobreviver às suas trincheiras.

Sinto-me um privilegiado por ter trilhado esse venturoso tempo e de poder resgatar num livro essa imensa memória colhida em tantos caminhos, numa profunda identificação com a história e as bandeiras revolucionárias desfraldadas pelo continente.

O meu livro é também uma reflexão sobre os sentimentos e as emoções que marcaram a agenda daqueles anos, dizendo da ventura de ter sido jovem nesse tempo e do desencanto de ver, atualmente,  as utopias desterradas. Falo da trágica herança dos nossos dias, de um mundo sem norte, sem porto e de um tempo marcado pela perplexidade e os pressentimentos. Mas ainda que nesse impasse,  minha alma de poeta não abdica de sonhar, imaginando que a misteriosa dialética do  tempo nos reconduza a um amanhecer, a uma aldeia  de esperança, a um mundo possível e melhor.

Nos anos 70, o que diferenciava o Brasil dos outros países vizinhos?

No plano político não havia grandes diferenças. Eram regimes de exceção e não estados de direito. Não falarei da economia, porque essa não é a minha paixão. O único fato que diferenciou o Brasil dos demais foi o regime militar que se instaurou no Peru, em 1968, sob o comando do general Juan Velasco Alvarado, propondo mudanças estruturais, amparo aos oprimidos, reforma agrária e colocando barreiras aos interesses imperialistas. Apesar de militares de tradição conservadora, sonharam com um socialismo nacional e reataram relações diplomáticas com Cuba, com a União Soviética e com a China maoísta.

No entanto, esta bem intencionada revolução dos coronéis não sobreviveu a uma grave doença do seu idealizador, em 1975, e, quando Velasco morreu, em 1977, seu sonho de redenção social do Peru também já estava morto.

Entre as ditaduras militares, a grande diferença foi o golpe e a repressão sanguinária de Pinochet, no Chile, por certo o fato mais marcante dos anos 70, assim como a ditadura argentina, cujas estatísticas da crueldade fizeram seus comparsas parecer santos. Enquanto no Brasil tivemos, segundo os dados da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 475 mortos e desaparecidos, na Argentina estima-se que foram 30.000. Por outro lado, a lamentável diferença que sobreveio com o julgamento da História, é que os nossos vizinhos julgaram e puseram na cadeia os verdugos da repressão e aqui no Brasil eles continuam impunes, ironizando as nossas comissões da verdade.

E qual semelhança havia entre essas nações?

A semelhança é que nos anos 70 todo o sul do continente ostentava também suas ditaduras, coordenadas pelo mesmo imperialismo. Tivemos o Paraguai a partir de 1954, o Brasil em 64, em 71 a Bolívia, o Uruguai e o Chile em 73, e a Argentina em 1976. Em nenhuma havia democracia nem garantias constitucionais. Em todas elas, seus oficiais soletraram o be-a-bá da repressão, nas cartilhas da contrainsurgência da Escola das Américas, mantida pelos norte-americanos no Panamá.

No Brasil, os agentes civis aprenderam muito com as técnicas do suplício ensinadas por Dan Mitrione, o mestre norte-americano da tortura, cuja sinistra carreira foi encerrada pelo Tupamaros em 1970, e cujos ensinamentos foram levados para o Chile pelos torturadores brasileiros. Embora cada ditadura tivesse o seu perfil nacional, a Operação Condor associou a todas no mesmo grau de cumplicidade, nos métodos de crueldade e no planejamento dos assassinatos.  

De lá para cá, o que mudou na América?

Creio que mudou muito. Os EUA já não conseguem violentar nossa liberdade e nem estrangular nossa economia como fez com Cuba. Nossos povos aprenderam a resistir e a decidir nossos destinos. Os movimentos sociais e a consciência política são hoje os agentes da nossa história e isso possibilitou que governos populares ascendessem ao poder no Brasil, Uruguai, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, Nicarágua, El Salvador, Guatemala e, recentemente, no Chile. Já não somos vítimas do FMI.

Creio que fatos como a invasão da República Dominicana pelos Estados Unidos, em 1965, bem como sua intervenção direta no golpe militar que derrubou Allende em 1973, são agora improváveis de acontecer.

Para você, o que é a América Latina?

Para mim, diante dessa crise global, creio que a América Latina é ainda o melhor lugar para se viver. Enquanto a Europa parece desagregar-se, abatida pela própria ganância dos seus mercados especulativos, aqui sentimos que estamos nos integrando. Ainda que, no mundo ocidental, vivamos sob a feroz imposição ideológica do neoliberalismo, ensejando uma cultura de consumismo que atinge a todos, creio que aqui ainda não fomos contaminados pela desesperança.

Na verdade, para mim, que sou um poeta, não é com a linguagem geopolítica que posso definir a América Latina. Creio que posso defini-la melhor com os versos de um poema que escrevi, há alguns meses, descrevendo seus encantos e suas lágrimas:

 

AMÉRICA, AMÉRICA

   Manoel de Andrade

 

Trago ainda na alma o mapa dos caminhos...

Meus versos riscam teu dorso para cantar um tempo único e perfumado.

América, América,

ali, entre os ramos e o penhasco, o abismo florescido,

acolá, o milho semeado e a colheita rumorosa.

Entre serras e quebradas vai o colla dedilhando sua flauta,

é seu hino à pachamama modulando o silêncio do altiplano.

 

Canto meu enredo de viandante,

passo a passo rumo ao norte e à alvorada.

Quantos atalhos, meu Deus, quantas fronteiras!

A travessia ao entardecer no Titicaca,

O Illimani batido pelo sol,

e aquela noite sob as estrelas em Macchu Picchu!

Ah! este aguaceiro vem agora molhar minha saudade,

e tudo me chega como um recanto do passado...

e se hoje digo amigos e digo hermanos,

ouço nossos passos ecoar pelas vielas seculares de Quito e de La Paz.

 

Ai, América, ainda não disse de ti quanto quisera,

abre teu cântaro, ó Poesia, e dá-me o frescor do rocio,

dá-me a magia e o lirismo...,

que canção para mim soará mais bela que tuas sílabas de encanto?

América, América,

Lembro-me do fulgor do teu rosto renascido da utopia,

tuas bandeiras de sonhos

feitas de plumas e veias transparentes.

Os campos todos semeados

e o porvir tatuado em cada gesto.

Tudo era aroma na gleba cultivada,

nos brotos germinava a esperança

e nossas pálpebras se abriam para o amanhã.

 

Canto a América que vivi,

entre alegrias e lágrimas, canto o continente ao sul de Anahuác.

Falo de uma América primeira,

asteca, quiché, chibcha, quéchua, mapuche e guarani,

essa América materna,

botânica e mineral,

sangrada por Cortez, Pizarro e por Valdivia.

Falo de uma só pátria,

a grande pátria de Bolívar,

pilhada e violentada,

submetida pelas garras perversas do Império.

Vi tuas trincheiras abertas

e depois as densas trevas caírem sobre o sul.

Sobreveio o chumbo cruel,

os labirintos da dor e as atrocidades.

Na penumbra gemiam os cravos, gemiam as rosas,

e agonizava a vida ainda em botão.

 

Canto para denunciar a verdade sufocada,

e eis que mancho este verso para nomear Garrastazu, Bordaberry, Videla, Pinochet

e seus rastros genocidas num tempo silenciado.

Canto para dizer das valas clandestinas,

das ossadas do Atacama

e dos “voos da morte” para o mar,

Meu réquiem para trinta mil argentinos,

meu canto para as “crianças da ditadura”,

para os sobreviventes e suas cicatrizes,

para a viuvez e a orfandade

para las Madres de Plaza de Mayo e suas lágrimas perenes.

 

América, América,

quarenta anos se passaram

e tuas feridas ainda emergem da tragédia!

E aqui declino a “operação” perversa dos “condores”

e os seus generais malditos.

Canto por ti, América,

por tuas aldeias de bravos e por teus calvários,

por teu nevado esplendor tantas vezes torturado,

América de tantos massacres e patíbulos,

ouço-te ainda na voz melancólica dos charangos, quenas e zamponhas,

chorando por la matanza de San Juan, em Potosi.

Uma América de martírios,

estrangulada em Cajamarca,

esquartejada em Cusco,

sacrificada em La Higuera.

executada em Trelew e El Frontón,

e nos rituais da morte em Villa Grimaldi e no Dói-Codi.

 

Por tanta dor nessas memórias

eu vos peço perdão pelo meu canto.

Ele é também assim: um áspero clarim no entardecer.

Distante, tão distante,

no tempo e nos andares,

e hoje, em busca de mim mesmo,

ainda abrigo o mesmo combativo coração.

Não sei o que te espera, América,

os anos correram inquietantes e velozes

restando um mundo com seu som intolerável.

 

Busco meu íntimo silêncio,

e, por um momento, digo basta...,

meu pensamento em prece, e num lampejo, viaja ao sul do Chile.

Lá, muito além do Bio-Bio, há um golfo deslumbrante.

Vou em busca de Arauco,

lá lutaram meus heróis, Caupolicán e Galvarino.

Foi lá onde viveu Lautaro e onde vive Frederico.

Vou para rever o cone nevado do Antuco

rever o vale e a Cordilheira,

o seu dossel verdejante, onde se gesta a vida.

Vou para relembrar uma baía de barcos,

para construir uma paisagem na alma,

uma tenda de luz para um amigo.




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