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No hall de entrada da casa, entre plantas, capelas de ametista e uma ânfora italiana, há uma pedra redonda, áspera, escura e pouco atrativa. No entanto, o visitante pode olhar dentro dessa pedra e descobrir que lá está escondido um belo bloco branco e cristalino. Ao acender a lâmpada, tem-se uma visão deslumbrante do cristal puro e único.

Assim parece ser Ragnhild Borgomanero. Como aquele cristal só disponível aos olhares convidados, ela também está acobertada por uma imaginária capa pétrea. Mas, quando se dirige o raio de luz sobre ela, pode-se ver seu brilho, a energia e o fulgor da sua personalidade.

Difícil ficar indiferente à sua presença. Uma bela mulher beirando os 80 anos, inteligente, elegante, bem humorada e que encara a vida como uma dádiva. O segredo dessa disposição, diz Ragnhild, é “não se aborrecer e manter os interesses”.

Interesses não lhe faltam, principalmente aqueles voltados à arte clássica. Rag, como é chamada pelos amigos, está sempre em movimento. Comparece a todos os concertos, assiste ensaios, recebe e hospeda maestros e cantores líricos na sua casa, participa ativamente dos eventos culturais da cidade, é conselheira do Instituto Goethe, faz parte da diretoria da Sociedade Giuseppe Garibaldi, cuida do acervo fotográfico do marido falecido, cose seus próprios vestidos, prepara receitas novas e antigas, viaja muito e mantém uma relação estreita e amorosa com o filho Alessandro, a nora Juliana e o neto Leonardo, que moram em Goiânia.

Mas a grande paixão, presente em todos os seus momentos, ainda é Guido Borgomanero. Falecido em 2005, Guido é quase uma lenda para os que o conheceram. Por muitos anos cônsul geral da Itália em Curitiba, Guido Borgomanero viveu intensamente com Rag ao seu lado. “Ele estava com mais de 40 anos, eu com mais de 30, adorava a minha profissão, ninguém pensava em se casar, só namorar. Discutimos muito e no final tivemos mais razões de ficar juntos e se casar do que se separar de novo.”

 Casaram-se em 1966, em Bremen (Alemanha), na casa dos pais de Rag, cidade que fica no meio do caminho entre Oslo (Noruega) e Roma (Itália) onde moravam os pais de Guido. Uma cerimônia simples, com poucas pessoas. “Uma festa íntima porque era complicadíssimo. Meus pais não falavam italiano, os pais de Guido falavam bem o francês mas não falavam alemão. O francês de meus pais era mais ou menos. Só estavam os meus irmãos e duas amigas. Eram poucas pessoas, eu queria assim e Guido também queria isso. Íntimo mas bem feito.”

“Um bom casamento é um bom compromisso entre dois egoístas. É claro que cada casamento tem seus problemas e eu também tive com Guido, mas nunca ‘ninguém dormiu fora de casa’. Tivemos discussões violentas sim, mas Guido era especial, ele sabia pedir desculpas também, quando descobria que foi ele que exagerou. É isso que digo de todos os homens. Cada um tem no mínimo três atividades na vida: uma é a profissão que gosta e que ganha dinheiro; depois quando casa, porque casamento não é uma coisa que cai do céu, é uma atividade. Amar precisa se renovar todo dia, ativamente. E a terceira com crianças, porque educar também é uma atividade. Acho que são poucos que conseguem ver isso e que podem ir à frente com os problemas. Com Guido não tive aborrecimentos porque sempre os interesses eram múltiplos do seu lado. Ciúmes também não havia. Só posso imaginar ter ciúme de uma coisa só, quando se vive com uma pessoa intelectualmente, no entendimento intelectual é que posso ter ciúme.”

Nesses quase quarenta anos de casamento, Rag morou em Roma, rodou a Europa, acompanhou os compromissos diplomáticos do marido e carregou pedras. Literalmente. Guido foi um grande colecionador de fósseis e gemas semipreciosas, e montou um dos maiores museus paleontológicos particulares existentes hoje na América Latina. “Eu aprendi muito de geologia, não sabia nada e aprendi muito com ele, música sabia bem antes também, mas ele era muito mais profundo do que eu.”

A MÚSICA

Ragnhild conta que a música esteve presente na sua vida desde a infância. “Meu pai era médico, foi professor de Medicina e estudou violino também, como nas boas famílias se fazia: meninos aprendem violino e as meninas, piano. Então ele, nascido em 1891, antes da I Guerra Mundial, se formou em Medicina, escolheu a faculdade de Medicina segundo o professor de violino que tinha na época. Muitos médicos na Alemanha fazem música, até hoje existe uma Orquestra Sinfônica em Berlim que só médicos tocam. Então era muito comum. A única coisa que se gasta em uma família é com a formação musical. Somos cinco irmãos, sou a mais velha dos cinco, amigos até hoje. Todos nós aprendemos um instrumento, eu também aprendi piano mas não fui muito para frente, mas todos nós cantávamos no coral. Depois da guerra, meus irmãos estavam no coral de vozes para garotos, e cantávamos muito. Nós ajudávamos nos trabalhos da casa, a lavar louça, enxugar e isso era feito com as cantatas de Bach.”

Alemã de Bremen, filha de mãe norueguesa e pai alemão, Ragnhild fala seis línguas: português, norueguês, francês, inglês, alemão e italiano. Mas não resiste citar o comentário divertido que Guido lhe fazia. “Quando perguntavam para ele quantas línguas fala a sua esposa, ele era capaz de dizer que não fala nenhuma, mas é capaz de se explicar bem em seis.”

A COZINHA

Os livros de culinária também são organizados por idiomas. “Tenho uma biblioteca em francês, em norueguês, em português e italiano. Cozinhei sempre com prazer. Aprendi em casa antes de sair e depois foi a minha profissão.” Ragnhild é especialista em Nutrição e Dietologia, a ciência que estuda as propriedades alimentícias e propõe dietas específicas para cada caso particular.

“Para entrar na escola de Dietologia que na Alemanha faz parte, de um modo geral, da faculdade de Medicina, você precisa fazer um ano de home economics (não sei como se diz em português), que eu fiz em Oslo, um ano em um restaurante, em uma cozinha de hospital e no melhor restaurante em Bremen. Depois, os estudos eram que se trabalhava de manhã na cozinha preparando vários regimes. Em um hospital de dois mil leitos, eram 600 diferentes porções de regime que se fazia nessa cozinha. E, de tarde, se tinha aulas de teoria.”

“A Escola de Dietologia não é faculdade na Alemanha, é curso técnico. Só que na Alemanha são três, quatro anos, não meio ano como aqui, essa é a diferença. São as chamadas profissões que ajudam na Medicina, como a fisioterapia. E depois trabalhei como funcionária no Instituto Max Planck de Pesquisa, em Dortmund (Alemanha), onde está o departamento de Fisiologia e Nutrição. Fazia parte da equipe de pesquisas em nutrição. E, durante esse período, também cantava no coral. Bach, naturalmente.”

Como toda boa cozinheira, sua mesa é farta e com frequência está pronta para receber convidados a partilhar suas receitas. “Festas grandes, não. Gosto de fazer petit-comité para conversar com as pessoas. Não gosto de lugar com muita gente e que depois não se conversa. Sim, eu sempre cozinho. Só uma vez, quando festejamos 70 anos, Guido disse ‘Por que você vai fazer? Podemos pedir...’. Mas a comida não foi tão boa como a que eu faço. Desculpe, mas é a santa verdade”.

O VIGOR

Aos 79 anos, Ragnhild mantém a forma física da juventude. “Eu faço ginástica todo dia. De vez em quando sou um pouquinho preguiçosa... mas sou saudável, não tenho pressão alta, não tenho diabetes, tudo normal”, fala orgulhosa. “É preciso fazer brain jogging porque não quero ficar numa cadeira de rodas. E eu não vou ficar”.

A forma magra e longilínea de Ragnhild causaria inveja a muitas moças. Mantém um guarda-roupa vintage porque tudo ainda lhe serve, “menos o vestido de noiva”, diz sorrindo. E costura suas próprias roupas por não encontrar confecções adequadas às suas medidas. “Continuo a fazer os meus vestidos e costurar. É difícil para mim comprar nos países latinos porque a minha figura é nórdica. Além disso, eu não tenho muita paciência de ir a boutiques e provar vestidos e tudo isso. Faço mais depressa em casa e custa menos.”

Sua vitalidade é evidente. Seu andar é rápido e seus gestos são firmes e seguros. “A sorte minha é que estou no centro e posso andar a pé. Aprendi a andar de ônibus, ontem no concerto fui de ônibus e voltei de ônibus, porque carro não se encontra mais lugar”. E quando chove? “Eu sou de uma cidade onde chove quase 400 dias por ano e é apenas uma questão de se vestir!” Prática, não?

Ragnhild gosta de viajar. Muito. “Eu não quero estar numa cadeira de rodas e depois dizer ‘quando você podia, você não foi’ ”, fala com firmeza. Por isso, voa com frequência à Europa para visitar os irmãos e matar as saudades dos amigos. É capaz de dirigir sozinha e vencer distâncias rodoviárias que assustam qualquer motorista. “Em agosto, fui de carro com o meu sobrinho a Foz do Iguaçu e depois a Ametista do Sul, foram 1.950 quilômetros e eu dirigi 1.800.”

OVOS DE DINOSSAURO

Rag mora em uma casa grande, sólida e impregnada de lembranças. “Quando chegamos em dezembro de 74, em Curitiba, nós pensávamos em ficar uns três, quatro anos e depois ir para onde Deus quisesse. Mas Guido, no fundo, estava cansado de mudar, porque ele mudou muito, viajou com seus pais, foi estudante no Rio nos anos 40, foi expulso na época que o Brasil declarou guerra aos países do Eixo, e seu pai trabalhava na Embaixada da Itália, “ligação”, se chamava. Depois foi ser cônsul adjunto em São Paulo, e dizia ‘com a ajuda do bom Deus, não faça o cretino me fazer voltar para a Europa’. Então, em 1979, 80, decidimos ter casa própria, morávamos em casa de aluguel. Guido dizia ‘vamos construir’, mas depois decidimos que não teríamos paciência de esperar a construção. Essa casa estava pronta e era difícil de vender porque brasileiro não gosta de salas grandes. No final mostrei para Guido e ele, deslumbrado, disse: “essa casa sim, aqui posso conviver com minhas coisas...”

E lá estão as paredes ocupadas com muitos quadros e vitrines preparadas para abrigar o acervo de fósseis e pedras. Quase não há lugar para uma nova montagem fotográfica que ganhou de um amigo. Mas Ragnhild está contente em morar ali rodeada de lembranças e memórias. Fala com satisfação do acervo e do curta-metragem que foi protagonista. “Esse filme ‘Ovos de Dinossauro na sala de estar’ não foi minha ideia. Foi o artigo da Folha de Londrina que o Rafael Urban escreveu e depois vieram em casa, ‘o que você acha? Eu gostaria de fazer filme curta-metragem e faço o projeto para isso’. Não tinha razão de dizer não, não tinha argumentos. Mas nunca teria pensado que o filme teria tal sucesso porque foi exibido em mais de cem festivais de cinema, ganhamos o primeiro prêmio de direção, em Recife primeiro prêmio da crítica, e você sabe, a última esteve no Rio! Então, em janeiro eles me filmaram e contaram de improviso a minha história. Depois do filme, descobri que esqueci várias coisas. Então estou escrevendo.”

VIVER SÓ

Guido Borgomanero ainda está presente em todos os lugares da casa e as saudades fazem parte do cotidiano. Ao responder como é viver sem Guido, Rag se emociona. E diz: “Bom, precisa se acostumar simplesmente. Eu não levanto e não deito sem pensar nele. Óbvio tudo isso (mostra a casa, a coleção). Ele está presente em tudo, é certo, é inevitável. Enquanto eu pudesse viver, tinha que continuar. E por isso sou de bom humor porque seria ingrata com tudo que vivi até aqui, se me deixasse andar e não fazer mais nada”.

Quando ficou viúva, seu filho quase a convenceu de ir morar em Goiânia, para estar mais perto da família. Porém, Ragnhild resistiu. “A ideia era construir uma pequena casa para mim e uma grande para eles. E eu pensei comigo, ‘eu vou comprar uma casa em Goiânia e obrigar os filhos a visitar a mamãe no fim de semana só porque está lá...’. Não. Decidi ficar em Curitiba, até porque a vida cultural de Curitiba é bem mais rica do que Goiânia. E eu continuo a ficar nessa casa grande, porque é tão bem feita que a manutenção não me custa mais do que um condomínio qualquer em edifício.”

O FUTURO

“O futuro? Bom, vamos ver, não é? O futuro é aproveitar todo dia. Isso eu acho a coisa mais importante. Eu não tenho problema de me adaptar porque sou o tipo que, se me colocarem no deserto, eu também sei estar no deserto. Sou um pouco preguiçosa atualmente, eu preciso fazer mais. Estou escrevendo as minhas lembranças da guerra e, para lembrar tudo isso, me ajudam muito as cartas dos meus pais, desde 1931, quando meu pai fazia a corte a minha mãe, tudo isso existe, quase 90 anos. Eu não escrevo livros, então faço diários. Escrevo o que tenho feito, o que devo lembrar, que livros estou lendo e passagens que estou copiando dos livros, o que me interessa.”

Igual ao cristal multifacetado, que reflete cores sob a incidência da luz, Ragnhild Borgomanero transmite seu entusiasmo pela vida conforme o assunto provocado. A conversa com ela pode ser interminável. Sua trajetória de vida daria um livro interessantíssimo para bons leitores, tal a quantidade de histórias e experiências vividas que ela tem para contar. E quase como um mantra, Ragnhild repete que o segredo de viver bem “é não se aborrecer, ter amigos e cultivar interesses.”




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