Il Casanova
De Federico Fellini

por Dico Kremer

Com o passar do tempo, com a maior informação que se vai adquirindo pela própria vivência, nossa percepção de uma obra de arte muda. Lemos, olhamos, escutamos, com outros olhos e ouvidos. Mais críticos, talvez mais serenos e com menos preconceitos. Mas há, também, o caso em que uma obra é mutilada à revelia de seu autor e julgamos, desconhecendo a mutilação, que é a versão do autor. Quando assisti na década de 70 ao filme “Il Casanova di Federico Fellini” tive uma reação negativa. Não gostei de nada. Achei o ator principal, o norte-americano Donald Sutherland abobalhado e a narrativa incoerente, caótica. Bem, depois vim a saber que a exemplo de outros dois filmes da época, “O Último Tango em Paris”, de Bernando Bertolucci, e  “A Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, o filme de Fellini tinha sucumbido à sanha moralista do governo militar. O filme foi considerado, como os outros, pornográfico. Dos 155 minutos originais de “Il Casanova” sobraram uns 110. Agora já temos o filme em sua versão integral. São dois DVDs. E é outro o filme. Das “Memoires de Giacomo Casanova de Seingalt écrits par lui-même” Fellini pinçou das quatro mil páginas alguns episódios de sua vida para compor o seu Casanova. E surge um Casanova cavalheiro e velhaco, contido e espalhafatoso, com senso de justiça e bajulador, mistificador, amoroso, apaixonado, que se apresenta como escritor (que de fato era), teólogo, filósofo, matemático (inventou uma loteria que explorou junto à corte francesa), conhecedor de línguas e grande amante. Em “Giulietta degli spititi” e em “Fellini Satyricon” o autor já havia mostrado sua poderosa imaginação. Nesse filme Fellini se supera em criação, em exuberância, na crítica ao ser humano e à humanidade. O filme foi todo filmado nos estúdios da Cinecittà, não há cenas externas. O décor, o vestuário, a fotografia de Giuseppe Rotunno, a música de Nino Rota, o desempenho dos atores sob a batuta de Fellini, tudo é magistral. A Veneza de estúdio é mais bela que a verdadeira, o mar de plástico mais bonito que o mar, o rio Tâmisa de estúdio supera o da Inglaterra. Tudo vem da imaginação do grande regista. Coerente com toda a sua obra, sua imaginação cada vez mais fantástica, a criar a partir de roteiros escritos por ele e colaboradores ou tendo como ponto de partida obras de outros (Petrônio, Casanova), Fellini mostra através do primeiro ao último de seus filmes a frágil grandeza e, mais, o sofrimento, a angústia, a ilusão, o absurdo da vida. E para aqueles que veem nas Memórias de Casanova uma amostra da douceuer de vivre do período do antigo regime de antes da revolução francesa, o filme de Fellini mostra, pelo contrário, a exacerbação e os excessos de uma época quase a se apagar. Fellini foi e continua sendo um dos maiores artistas que a humanidade teve o privilégio de conhecer.

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