Colunista
Rubens Campana

08.08.12
Um dicionário para o Diabo

Há um embate que prossegue entre as teorias da linguagem, que coloca de um lado os “normativistas” e de outro os “descritivistas”. A polêmica continua a ser debulhada no Brasil e no exterior em intermináveis debates.
De acordo com a dicotomia, os favoráveis da teoria normativa ou prescritiva acreditam que certos usos da linguagem são inerentemente corretos e outros inerentemente incorretos e que promover as formas corretas é o mesmo que defender a verdade, a excelência, a moralidade e o que há de melhor na civilização.

Os favoráveis da teoria descritiva, de acordo com esse esquema, acreditam que as normas de correção são lemas arbitrários da classe dominante, concebidos para manter as massas em seu lugar. A língua é produto orgânico da criatividade humana, e as pessoas devem ter a liberdade de escrever da forma que melhor entenderem.

Em artigo recente, o psicólogo Steven Pinker tenta enterrar a disputa. Explica que qualquer entendimento mais razoável da linguagem está acima dos dois lados do falso debate e apenas depende de uma percepção simples: regras de uso adequado da linguagem são convenções tácitas. Em uma analogia, as pessoas na Inglaterra não dirigem seus carros na pista da esquerda apenas porque as leis dizem isso, ou porque há uma vantagem inerente a esse lado, mas porque seria perigoso e estúpido dirigir na pista da direita.

As convenções da escrita representam padronização similar. Inúmeras expressões, sentidos e construções são cunhados e circulados pelo universo dos falantes, enquanto linguistas capturam essas regularidades em regras.

Embora os dicionários sejam incapazes de impedir as mudanças nas convenções linguísticas, isso não significa que eles não possam registrar as convenções em vigor. E a fraqueza dos dicionários em congelar a mudança linguística também não significa que eles estejam condenados a observar passivamente a deterioração de uma língua em um conjunto de grunhidos e gírias.

Na verdade, é possível que a própria alma dos dicionários esteja na tensão entre descrição e prescrição. Talvez tenha herdado de família o fascínio por dicionários, mas o fato é que posso perder horas navegando entre verbetes. Tenho notícia de que o interesse não é tão incomum e de que W.H. Auden, por exemplo, não desgrudava de sua enorme edição do Oxford Dictionary.

Longe das discussões arcanas da academia, como gênero literário, o dicionário rendeu grandes sátiras. À primeira vista, o Dicionário do Diabo, do americano Ambrose Bierce, de 1906, parece ter pouco a contribuir em termos de descrição ou normatividade, mas captura a melhor definição que temos até hoje de algumas profissões:

“POLÍTICO, s. Uma enguia na lama fundamental sobre a qual a superestrutura da sociedade organizada é erguida. Ao se contorcer confunde a agitação de sua cauda com o tremor do edifício. Quando comparado com o estadista, sofre a desvantagem de estar vivo.”

Para Bierce, a definição de “Egoísta” é aquele que é “Desprovido de consideração quanto ao egoísmo dos outros”, e “Auto-estima” é apenas definida como “Uma avaliação errônea”. Ateu convicto, Bierce ainda assim relata a origem de nossos problemas no seguinte verbete:

“SATANÁS, s. Um dos erros lamentáveis do Criador. Sendo empossado como arcanjo, Satanás fez-se variadamente desagradável e finalmente foi expulso do céu. Na metade de sua descida, ele parou, abaixou a cabeça por um momento, pensou e finalmente voltou. “Há um último favor que eu gostaria de pedir”, disse ele.

— Diga-o.
— O Homem, eu compreendo, está prestes a ser criado. Ele vai precisar de leis.
— O que, desgraçado! Você é o adversário designado, incumbido desde o alvorecer da eternidade com o ódio da alma humana – e você pede o direito de fazer suas leis?
— Perdão, mas o que eu tenho a pedir é apenas que ele seja autorizado a fazê-las ele mesmo.
E assim foi feito.”

H.L. Mencken também produziu dicionário irônico, organizando citações em vários temas. Na entrada sobre “Vida”, registrou que “A vida é como a embriaguez: o prazer passa, mas a dor de cabeça continua.” E o Dicionário das Ideias Feitas de Gustave Flaubert tem grande proximidade com a obra de Bierce. O cinismo de Flaubert é acompanhado da ironia de quem, assim como o americano, detestava os chavões correntes:

“ARQUIMEDES: Ao ouvir seu nome, dizer Eureca. Dêem-me um ponto de apoio, e eu levantarei o mundo. Há também um parafuso de Arquimedes, mas não é necessário saber no que ele consiste.”

No Brasil, Millôr Fernandes organizou algo que se aproxima do gênero, na forma de sua genial Bíblia do Caos. Mas o nosso dicionário satírico ficou mesmo por conta de Oswald de Andrade e seu Dicionário de Bolso. Entre verbetes elogiosos a Luís Carlos Prestes, típicos do momento em que foram escritos, sobra no dicionário de Oswald ao menos uma definição digna de um Dicionário do Diabo brasileiro:

“CABRAL: O culpado de tudo.”










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